Por Dr. José de Souza Andrade-Filho
Muito se tem discutido sobre o ensino da medicina no Brasil e em outros países, às vezes com pontos de vista conflitantes. É óbvio que todas as faculdades de medicina procuram oferecer o melhor aprendizado ao seu corpo discente. A maioria dos professores demonstra grande empenho com a qualidade do ensino, procurando repassar os seus mais sábios conceitos e condutas aos graduandos e pós-graduandos. Temos excelentes faculdades, hospitais de alto padrão técnico e científico em vários estados brasileiros, contendo ótimos profissionais nas várias especialidades médicas. Entretanto, talvez por desconhecimento de trabalhos científicos fidedignos, preceitos anacrônicos são perpetuados e repassados aos alunos de graduação e de pós-graduação em nosso país.
Um exemplo de conceito equivocado, amplamente difundido e um dos mais comuns incômodos do ser humano é o chamado cisto sebáceo. A presença de cistos na pele e no subcutâneo, popularmente conhecidos como lobinhos ou lombinhos, são referidos como cistos sebáceos e retirados através de procedimento cirúrgico, geralmente de fácil execução e em ambulatório. Essa nomenclatura – cisto ou quisto sebáceo – é encontrada em vários livros de ensino médico, consta de prontuários e fichários de pacientes e de estatísticas de procedimentos cirúrgicos, entre outros. Trata-se de um erro grosseiro de interpretação morfológica, pois essa lesão é revestida por um epitélio semelhante ao da pele, isto é, estratificado e queratinizante e contém queratina e não sebo. A denominação correta é cisto epidermoide (Epidermoid cyst (epidermal, infundibular): Pathology of the skin with clinical correlations. Mckee,PH, Calonje E and Granter SR. Vol II p.1664. Elsevier 2005). Uma variante deste cisto, que é mais comum no couro cabeludo, é mais enfaticamente rotulada como cisto sebáceo. Essa lesão, já descrita e estudada por especialistas é, na realidade, um cisto triquilemal ou pilar, referindo-se a um tipo especial de queratinização do pelo. Os que insistem que a formação do cisto denominado sebáceo resulta da obstrução do canal excretor da glândula sebácea e da consequente retenção de sebo, erram por desconhecer a patogênese da lesão, como comprovado em trabalhos científicos do século passado, um dos quais publicado em 1964, em periódico americano de grande credibilidade: Archives of Dermatology. AM Kligman. The myth of the sebaceous cyst/O mito do cisto sebáceo- Arch. of Dermatology,1964-Feb.89()152-6). Outra fonte pesquisada, comenta: “os cistos ceratinosos (epidermoides) foram conhecidos por muitos anos como cistos sebáceos, uma designação incorreta, oriunda da interpretação enganosa a olho nu de seu conteúdo e perpetuado por uma repetição destituída de crítica” (Surgical Pathology. Rosai, J. Vol I 9ª.Ed p.151, 2004-Mosby). A glândula sebácea, quando obstruída, entra em atrofia, pois as suas células (sebócitos) não sobrevivem à compressão provocada pela retenção de material córneo proveniente do pelo.
Os dicionários da língua portuguesa, incluindo os dois mais populares do Brasil, têm, em suas equipes, médicos colaboradores, que não corrigiram, no verbete cisto, a descrição equivocada da formação do mesmo. O leigo, ao consultar esses dicionários, aprende algo incorreto sobre o referido lobinho. Embora inócuo em muitos dos pacientes, todos querem se livrar dele, sobretudo pelo aspecto estético. Há um tipo de cisto muito raro em que há pequenos lóbulos de glândulas sebáceas rudimentares na sua parede, na chamada sebocistomatose ou esteatoma múltiplo. Trata-se de doença incomum de caráter genético.
Outros dois conceitos impróprios, também ensinados no curso médico, são o “granuloma piogênico” e as “hidradenites/hidrossadenites”. O primeiro, não é um granuloma genuíno e nem está relacionado a exsudato purulento. “The term “pyogenic granuloma” is a misnomer because the condition is neither pyogenic nor a granuloma (Neoplasms with Sebaceous Differentiation – Charles Steffen/A.Bernard Ackerman, 1994-pág. 731 Lea&Febiger). Trata-se de lesão benigna tipo “hemangioma” capilar/lobular ou, em certos casos, tecido de granulação hiperplásico. Vários médicos especialistas, afirmam: as hidradenites supurativas das regiões perianal, axilar e da virilha, entre outros locais, resulta da oclusão dos ductos de glândulas apócrinas. Trata-se também de conceito incorreto. O Prof. A. Bernard Ackerman, dermatologista americano renomado, argumenta: “A hidradenite supurativa representa meramente caricatura em locais diferentes de doença do tipo acne, não havendo comprometimento inicial das glândulas apócrinas, mas apenas secundariamente, consequente à supuração que se inicia no infundíbulo dos pelos e estende-se mais profundamente aos tecidos subjacentes. As hidradenites/hidrossadenites quase sempre representam foliculites de grau acentuado e, às vezes, com formação de várias fístulas profundas. As glândulas apócrinas, na maioria dos casos, não são afetadas ou o são secundariamente pela foliculite”. De fato, é o que se constata ao exame microscópico de peças cirúrgicas removidas com o diagnóstico de ”hidradenite”. Os relatos de hiperplasia linfóide do íleo terminal, citados com certa frequência em laudos de colonoscopia, nada mais são do que as placas de Peyer (Johann Conrad Peyer-1653-1712) normais descritas por esse médico alemão em 1677 (The origin of medical terms, H.A.Skinner, 1961. The Williams&Wilkins Co. Baltimore)).
Nota-se, como corolário do exposto acima, uma divergência entre o aprendizado do aluno no curso de graduação e, posteriormente, na residência médica. O preceptor, eventualmente, não respeita a conceituação e/ou nomenclatura correta de processos patológicos ensinados na graduação: trate essa monilíase de esôfago…vá extrair essa “verruga” no ambulatório… retire esse cisto sebáceo… mande para exame esses três (3) nevus… (Latim: nevus= um nevo; nevi=dois ou mais nevos).
Patologia, por definição, significa o estudo das doenças. Porém, como ciência, engloba: o estudo das causas das doenças (etiologia), os mecanismos que as produzem (patogenia), as sedes e alterações morfológicas e funcionais que apresentam (anatomopatologia macro- e microscópica e fisiopatologia).
A patologia é uma parte dentro de um todo que é a medicina. O diagnóstico clínico, a prevenção e a terapêutica das doenças, embora sejam indispensáveis ao raciocínio semiótico, não são objetos da patologia. Nas últimas décadas do século 20, muitos médicos brasileiros e também de outros países adotaram o termo patologia como sinônimo de doença, o que é impróprio e pode ser considerado como corruptela no sentido de alteração abusiva. Contudo, temos que dar a mão à palmatória, pois tal “corrupção” está muito difundida e parece irreversível. Um colega, dado a jocosidade, disse que é melhor o cliente sofrer de uma patologia do que de uma doença.
Alguns alegam que muitos termos são “consagrados pelo uso”, o que é questionável. Os médicos e cientistas não foram apagando e substituindo paulatinamente os mais de dez séculos de conceitos dogmáticos e incorretos de Claudius Galeno, considerado um deus da medicina? Não adotamos a verdadeira anatomia de André Vesálio? Não abraçamos os grandes progressos semiológicos e terapêuticos mais recentes da medicina salvando vidas? No século 21 podemos deixar o “eu não sabia” para outros.
Muitos professores poderiam argumentar que temos algo mais importante a nos preocupar, o que é verdade. Porém é nosso dever transmitir aos jovens alunos/acadêmicos algo que tenha respaldo científico. A solução para problemas dessa natureza reside na vontade dos responsáveis pelo ensino médico em abolir conceituações equivocadas nos períodos de graduação e de pós-graduação.
A frase atribuída a Mark Twain, escritor americano, vem a calhar: “não se desembaraça de um hábito jogando-o pela janela, mas fazendo-o descer as escadas degrau por degrau”.
*José de Souza Andrade-Filho – Patologista no Hospital Felício Rocho-BH; membro da Academia Mineira de Medicina e Professor de Patologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Também assina a sessão “Analogias em medicina” da Revista Newslab.