O pronunciamento recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) fez com que 2020 fosse um ano marcante para a história do câncer de colo de útero, também conhecido como câncer cervical. Trata-se de uma estratégia global, ambiciosa e inclusiva, que visa acelerar a erradicação deste câncer até 2030, através da implantação de ferramentas existentes, porém ainda de acesso restrito à população. O anúncio foi recebido com entusiasmo por diversas lideranças de saúde ao redor do mundo, visto que o câncer cervical, mesmo sendo uma doença evitável e tratável, quando precocemente diagnosticado, ainda é responsável por estatísticas alarmantes, que tendem a aumentar diante da não adoção de medidas eficazes ao seu combate. Estatísticas mundiais apontam 570.000 novos casos em 2018, com 311.000 mortes, sendo a maioria dos casos de mulheres de países com baixa a média renda, expondo deficiências nos programas de rastreamento citológico, seguimento e tratamento precoce, o que reflete a desigualdade global. No Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), foram estimados 16.590 novos casos e 6.526 mortes em 2019.
Neste sentido é que as ferramentas para erradicação deste câncer se tornam referências para a atenção básica de saúde pública, fundamentando-se na implantação coletiva de 3 três pilares: prevenção primária, prevenção secundária e tratamento precoce associado à assistência com cuidados paliativos às portadoras de tumores invasivos.
A prevenção primária tem como meta a cobertura vacinal de 90% das meninas de até 15 anos de idade contra o Papilomavírus Humano (HPV) – infecção sexualmente transmissível (IST) mais comum em todo o mundo, atingindo 11,7% da população mundial. Atualmente, o papel do HPV no processo de carcinogênese de tumores anogenitais, especialmente no câncer cervical, já está bem fundamentado. Além disso, a história natural da infecção aponta que comportamentos sexuais como início precoce da vida sexual e múltiplos parceiros são potenciais fatores de risco para o desenvolvimento da infecção (INCA, 2020). Ao longo das últimas décadas, evidências científicas sustentam a presença do genoma do HPV em outros cânceres como, ânus, vulva, vagina, pênis e orofaringe, com a incidência global destes tumores aumentando consideravelmente.
A estratégia de vacinar meninas e adolescentes que ainda não iniciaram uma vida sexual tem sido eficaz, uma vez que a vacina é capaz de induzir a produção de anticorpos em quantidade dez a cem vezes mais altas em relação à infecção naturalmente adquirida. Infelizmente o cenário de cobertura vacinal contra o HPV no Brasil encontra-se abaixo das metas preconizadas pela OMS, principalmente no que diz respeito a segunda dose. Em 2017, a cobertura vacinal acumulada da vacina HPV, em meninas entre nove a 14 anos de idade, foi de 82,6% para a primeira dose (D1) e de 52,8% para a segunda dose (D2). Para os meninos de 12 e 13 anos, a cobertura vacinal com a primeira dose (D1) foi de 43,8% (Ministério da Saúde, 2018). Tais estatísticas se repetem ao redor do mundo e em 2020, menos de 25% dos países de baixa renda introduziram a vacina contra o HPV nos calendários nacionais de imunização. E, espera-se uma piora nestas taxas devido aos impactos da pandemia do novo coronavírus na distribuição e acesso às vacinas.
O rastreamento citológico, através do exame de Papanicolaou, definido como o segundo pilar, é a principal ferramenta de prevenção secundária da doença. Permite a detecção precoce de lesões na cérvice uterina e contribui decisivamente no decréscimo da incidência e mortalidade do câncer cervical. Embora tenha suas limitações, como baixa sensibilidade e reprodutividade. A descoberta da associação entre este tipo de câncer e o HPV levou a avanços tecnológicos importantes, incluindo o desenvolvimento de testes moleculares, possíveis de serem realizados nas amostras obtidas por citologia em meio líquido, para realização do co-teste (citologia oncótica associada a pesquisa do DNA- HPV), conferindo maior eficácia na detecção destas lesões, além da possibilidade de realização de exames laboratoriais complementares.
Sabendo que o câncer cervical representa um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo, o qual compromete a vida de mulheres jovens em idade reprodutiva, volta-se para adoção de estratégias complementares para melhorar os desfechos. É o que se vislumbra com a pesquisa de biomarcadores por técnicas de imunocitoquímica, assim como a busca por novos destes biomarcadores, os quais representam importantes táticas para o sucesso dos programas de rastreamento. Os marcadores biológicos são úteis no manejo clínico, auxiliando nos processos de diagnóstico, estadiamento, avaliação de resposta terapêutica, detecção de recidivas e prognóstico. E, estão sendo continuamente descobertos e já empregados na prática diária, como é o caso das proteínas p16, p53, Ki-67.
Para o cumprimento de tais metas será necessário um engajamento coletivo e multidisciplinar, a fim de pulverizar informações relevantes em diferentes canais de comunicação, pautadas em evidências científicas e com foco na prevenção, para aproximar a população das instituições de saúde e provocar o empoderamento social, capaz de quebrar paradigmas e combater fake news na realidade da saúde pública. Enfim, as ferramentas para eliminar o câncer cervical estão identificadas e possíveis de serem empregadas. Com a implantação de tecnologias como sistemas robustos de monitoramento, alinhado ao apoio dos governos, instituições de saúde e da população, teremos a chance de combater esta doença e deixar um legado para as crianças do nosso presente: uma geração livre do câncer de colo de útero.
Instituto Nacional de Câncer (Brasil). Tipos de Câncer: Colo do Útero. Rio de Janeiro: INCA; 2020. Disponível em: https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-do-colo-do-utero.
WHO. Draft: global strategy towards eliminating cervical cancer as a public health problem. Dec 16, 2019. https://www.who.int/docs/default-source/cervical-cancer/cervical-cancer-elimination-strategy.pdf?sfvrsn=8a083c4e_0 (accessed Dec 19, 2019).
Ministério da Saúde. Informe técnico da ampliação da oferta das vacinas papilomavírus humano 6, 11, 16 e 18 (recombinante) – vacina HPV quadrivalente e meningocócica C (conjugada). Brasília. 2018.
Luciana Chavasco
Farmacêutica-Bioquímica, especialista em Citologia Clínica pelo Instituto Adolfo Lutz, Especialista em Hematologia Clínica, Mestre e Doutoranda em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal da Alfenas, Responsável Técnica nos Laboratórios Chavasco, Membro da Ofac Business e colaboradora do Grupo Ofac University.