Autores: Renan Marrichi Mauch, Claudio Lucio Rossi, Marcos Tadeu Nolasco da Silva, Talita Bianchi Aiello, José Dirceu Ribeiro, Antônio Fernando Ribeiro, Niels Hoiby, Carlos Emilio Levy.
INTRODUÇÃO
O diagnóstico precoce da infecção pulmonar crônica por Pseudomonas aeruginosa é um dos principais desafios na rotina clínica da fibrose cística (FC), uma doença hereditária que afeta vários órgãos. A cultura microbiológica de material respiratório é o método diagnóstico de referência, mas possui limitações, já que apenas 35 a 40% dos pacientes são capazes de expectorar amostras de escarro espontaneamente [1,2] e a utilidade da cultura de swab de orofaringe como uma alternativa para a detecção da bactéria é controversa, já que esse método pode subestimar a presença bacteriana nos pulmões [3]. O uso de métodos sorológicos para detecção de IgG como uma alternativa, nesse cenário, tem sido discutido há muito tempo, e esse método se mostrou útil para a triagem de pacientes com infecção pulmonar crônica e daqueles em risco de desenvolvimento dessa condição [4,5]. No entanto, o potencial dos testes sorológicos para a detecção precoce da infecção por P. aeruginosa ainda é debatido [6], e a resposta de anticorpos pode surgir quando uma cepa mucoide de P. aeruginosa, produtora de biofilme, já está bem estabelecida nos pulmões de pacientes com FC [7].
Recentemente, a hipótese das “vias aéreas unificadas” sugeriu que as vias aéreas superiores (VAS), mais precisamente os seios paranasais, é o primeiro nicho e o principal reservatório de cepas de P. aeruginosa que causam colonização pulmonar intermitente, mesmo após certo período de terapia de erradicação com antibióticos. Dessa forma, a detecção e o tratamento da bactéria nas VAS podem evitar ou, pelo menos, adiar sua aspiração para as vias aéreas inferiores (VAI), onde ela causa a infecção pulmonar crônica [8-10]. Porém, a coleta de espécime dos seios paranasais com aspirado nasal (método de referência) é um procedimento muito invasivo, demorado, doloroso e de alto custo [9], sendo, portanto, inviável na rotina clínica da maioria dos centros de referência em FC. Métodos baseados em Ensaio de Imunoabsorção Enzimática (ELISA) para dosagem da resposta mediada por IgA secretora (sIgA) em lavado nasal e saliva já foram testada para propósitos diagnósticos, já que isso pode refletir uma resposta imune local na mucosa dos seios paranasais, e mostraram potencial para a diferenciação entre infecção pulmonar crônica, colonização pulmonar intermitente e ausência de colonização/infecção pulmonar por P. aeruginosa [11], bem como para descartar a presença da infecção pulmonar crônica [12].
Neste estudo, avaliamos, em um seguimento de três anos, a utilidade de um teste ELISA para dosagem de sIgA anti-P. aeruginosa em saliva, o qual padronizamos anteriormente [12], para detecção precoce de mudanças no perfil de colonização/infecção pulmonar por P. aeruginosa, as quais, por sua vez, foram indicadas por mudanças em resultados de cultura microbiológica e IgG sérica.
MÉTODOS
Classificação dos pacientes
O estudo foi realizado no Centro de Referência em FC do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (CERFC). Inicialmente, 70 pacientes com diagnóstico confirmado de FC [13], e sem infecção pulmonar crônica por P. aeruginosa, foram incluídos, dos quais dois pacientes foram transferidos para outros centros, dois solicitaram exclusão do estudo, e um perdeu o seguimento. A amostra final foi de 65 pacientes.
A definição dos perfis de colonização/infecção pulmonar por P. aeruginosa foi baseada em critérios de Leeds modificados [12,14], levando-se em conta resultados de cultura microbiológica de material respiratório (escarro ou swab de orofaringe) e de sorologia para detecção de IgG específica para P. aeruginosa, assim: nunca colonizados (pacientes sem histórico de P. aeruginosa em cultura microbiológica de material respiratório e com resultado negativo na triagem sorológica); livres de infecção (histórico de P. aeruginosa em cultura microbiológica, mas não nos últimos 12 meses anteriores ao estudo, com resultado sorológico negativo na triagem); colonização intermitente (isolamento de P. aeruginosa em menos de 50% das culturas nos últimos 12 meses, com resultado sorológico negativo, ou ausência do isolamento de P. aeruginosa com resultado sorológico positivo); infecção crônica (isolamento de P. aeruginosa em menos de 50% das culturas nos últimos 12 meses, com resultado sorológico positivo, ou isolamento de P. aeruginosa em 50% ou mais das culturas nos últimos 12 meses, independente do resultado sorológico).
Avaliação microbiológica das VAI
Pelo menos quatro culturas microbiológicas de espécime de VAI foram realizadas por paciente/ano. As amostras foram enviadas ao Laboratório de Microbiologia do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas e cultivadas em ágar MacConkey por 24 horas a 37ºC. A identificação foi baseada nas características morfológicas e bioquímicas das colônias – ausência de fermentação de lactose, aspecto metálico, odor semelhante a uva, reação da oxidase positiva e crescimento a 42ºC [15]. A identificação bioquímica foi confirmada por métodos automatizados, usando o sistema BD Phoenix™ (Becton-Dickinson), de acordo com as instruções do fabricante.
Dosagem de IgG sérica e sIgA salivar anti-P. aeruginosa
Os níveis de IgG sérica e sIgA salivar foram dosados usando testes ELISA padronizados anteriormente [12,16]. Para o teste sorológico, amostras de sangue foram coletadas em tubos de 4,0 mL sem anticoagulante e centrifugadas a 2500 rpm por 15 minutos, para obtenção dos soros. Amostras de saliva foram coletadas usando swabs de algodão Salivette® (Sarstedt). Basicamente, o swab é colocado na boca do paciente por três minutos e transferido para um tubo apropriado, para centrifugação (3000 rpm por 10 minutos) e obtenção de saliva pura.
Placas de ELISA de 96 poços foram sensibilizadas overnight com um pool de antígenos de P. aeruginosa comercializado – St-Ag (Statens Seruminstitut), diluído em uma proporção 1:2000 em tampão carbonato-bicarbonato (Na2CO3 10 nmol/L + NaHCO3 28 nmol/L; pH 9,5). Esse antígeno é formado por 64 antígenos hidrossolúveis dos 17 principais grupos-O de P. aeruginosa, os quais são obtidos por sonicação [5]. As placas foram lavadas três vezes com tampão de lavagem, composto por solução salina-fosfato tamponada adicionada de Tween 20 a 0,1% (PBS-T). Após essa lavagem, sítios não específicos na placa foram bloqueados com uma solução de albumina bovina sérica a 0,1% (diluída em PBS-T) por uma hora, e a placa foi lavada duas vezes com PBS-T. Amostras de soro (diluídas a 1:800) e saliva (diluídas a 1:8) foram adicionadas por uma hora, seguido por três lavagens com PBS-T e adição de IgG policlonal anti-humana conjugada – horseradish peroxidase (HRP) (P0214, Dako) – diluída a 1:4000 (em placas com amostras de soro) ou IgA policlonal anti-humana – HRP, P0216 (Dako) – diluída a 1:2000 (em placas com amostras de saliva). Tetrametilbenzidina (TMB; Sigma-Aldrich) foi adicionada como substrato por 10 e 20 minutos, em placas contendo soro e saliva, respectivamente. As reações foram paradas após adição de ácido sulfúrico (H2SO4) 1,0 mol/L. As absorbâncias das amostras foram medidas em um comprimento de onda de 450 nm em um espectrofotômetro para microplacas (Labsystems), e os valores de absorbância foram convertidos em unidades arbitrárias por mL (U/mL). Valores de corte de 28,2 U/mL e 47,2 U/mL determinaram resultados positivos para o teste sorológico e para dosagem de sIgA em saliva, respectivamente.
Após a triagem, os pacientes foram seguidos trimestralmente por três anos e monitorados para mudanças no perfil de colonização/infecção de VAI por P. aeruginosa e nos níveis de sIgA em saliva, os quais foram medidos pelo menos uma vez por ano. Uma mudança no perfil de colonização/infecção foi considerada quando da conversão de resultados microbiológicos ou sorológicos. Mudanças nos níveis de sIgA em saliva foram analisadas em diferentes cenários de investigação, de acordo com o perfil de colonização/infecção de VAI ao final do seguimento. Primeiro, os pacientes foram divididos em três grupos: pacientes que permaneceram negativos para P. aeruginosa (Pa(neg)), isto é, nunca colonizados ou livres de infecção nas VAI; pacientes que eram positivos para P. aeruginosa (colonização intermitente nas VAI) no início do seguimento, mas se tornaram negativos ao final do seguimento (Pa(pos-neg)), e pacientes que se mantiveram ou se tornaram positivos para P. aeruginosa (colonização intermitente ou infecção crônica nas VAI) ao final do seguimento (Pa(pos)). Em um segundo cenário, pacientes que se mantiveram ou se tornaram negativos para P. aeruginosa foram avaliados em relação a mudanças nos níveis de sIgA em saliva de acordo com episódios isolados de colonização de VAI por P. aeruginosa durante o estudo, e divididos em dois grupos: pacientes que tiveram pelo menos um resultado positivo de cultura ou IgG sérica durante o seguimento (os quais indicam colonização nova ou recorrente), e pacientes que não tiveram nenhum resultado de cultura ou IgG sérica positivo. Em um terceiro cenário, os pacientes foram agrupados de acordo com seu histórico de exposição à P. aeruginosa nas VAI. Nesse caso, pacientes que eram livres de infecção e aqueles que tinham colonização intermitente foram colocados no mesmo grupo, e pacientes sem histórico microbiológico de P. aeruginosa foram classificados como não tendo histórico de exposição à P. aeruginosa. Esse perfil foi mudado de não-exposto para exposto quando da conversão de pelo menos um resultado de cultura ou sorologia durante o seguimento.
Análise estatística
Níveis de sIgA foram comparados entre pacientes com diferentes perfis de colonização de VAI por P. aeruginosa (nunca colonizado, livre de infecção e colonização intermitente) no início e no final do estudo, nos diferentes cenários citados anteriormente, usando os testes não paramétricos de Mann-Whitney (para duas amostras independentes) e Kruskal-Wallis (para mais de duas amostras independentes). As variações dos níveis de sIgA entre cada grupo foram avaliadas usando os testes não paramétricos de Wilcoxon (para dois períodos diferentes) e Friedman (para mais de dois períodos diferentes). As diferenças entre porcentagens foram avaliadas usando o teste qui-quadrado. Análises de risco foram realizadas por meio do cálculo de odds-ratio (OR) e seus intervalos de confiança (IC) de 95%. Para todos os testes, um valor de p menor que 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.
Aspectos éticos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Parecer nº 931.170). Todo(a)s o(a)s pacientes que concordaram em participar do estudo assinaram um termo de consentimento informado. No caso de pacientes menores de 18 anos, o termo foi assinado por seu(sua) pessoa responsável legal e o(a) paciente (quando alfabetizado[a]) assinou um termo de assentimento.
Para o artigo completo, acesse a Revista Newslab Ed 156.

Renan Marrichi Mauchi é Biomédico pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG) e Mestre e Doutor em Ciências pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Trabalha nas áreas de microbiologia e imunologia, com ênfase em diagnóstico precoce e interação patógeno-hospedeiro em infecções crônicas. A linhas de pesquisa atual aborda a fibrose cística, condição essa que pode ser considerada um excelente modelo para o estudo de infecções crônicas. Foco em: epidemiologia e aspectos microbiológicos das infecções respiratórias na fibrose cística; diagnóstico precoce, formação de biofilme e funcionalidade da resposta imune humoral na infecção respiratória por Pseudomonas aeruginosa na fibrose cística.