A saúde na era da transformação digital já é uma realidade no Brasil, e o debate já não é mais sobre quando ocorrerão as mudanças tecnológicas na medicina , mas sobre como as empresas, médicos, profissionais da saúde, pacientes e a regulamentação se adaptarão e anteciparão a elas.
A cada dia nos deparamos com uma novidade tecnológica, um novo aplicativo, uma nova ideia sendo lançada por pequenas e inovadoras start ups. Da mesma forma, temos nos deparado com grandes investimentos em tecnologia para a área da saúde por grandes empresas como Google, Apple, Amazon que, até pouco tempo atrás, sequer imaginaríamos estarem atuando nesta área. O que há de comum entre as pequenas start ups e as grandes empresas de tecnologia é a visão de inovação em um segmento que requer convergência de informação e que precisa ser cada vez mais rápido, preciso e acessível à população diante de sua constante atualização.
Um exemplo de tecnologia que transformará a saúde é a nova versão do Apple Watch, relógio digital que é capaz de submeter o usuário a um exame de eletrocardiograma, além de ser capaz de detectar batimentos cardíacos irregulares, transferir os dados para análise médica e enviar notificação caso o dono do relógio necessite de assistência. Cada vez mais, a inovação médica estará no cotidiano das pessoas e o nível de acompanhamento de informações de saúde do paciente se tornará maior e mais relevante, o que consequentemente afetará a relação médico-paciente.
Atualmente, o segmento médico brasileiro está voltado para importantes discussões em relação às inovações tecnológicas, como a prática da telemedicina, a aplicação da inteligência artificial no diagnóstico, a digitalização do histórico de saúde do paciente e a regularização de software médico perante a Anvisa. Tais discussões são de extrema importância para o futuro da saúde no Brasil, visto que as pessoas, os produtos e os serviços estão cada vez mais “digitalizados” e este é um caminho sem volta.
Telemedicina
O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou em fevereiro deste ano a resolução que regulamenta a telemedicina, contemplando atividades como teleconsulta, telediagnóstico, telecirurgia, telemonitoramento e teletriagem. Porém, precisou recuar, já que o tema é disruptivo e o setor médico requisitou discussões mais amplas antes da efetiva regulamentação.
A título de exemplo, com o telediagnóstico os exames podem ser realizados virtualmente e os dados são transmitidos pelo computador; no caso de um eletrocardiograma, com a ajuda da tecnologia o paciente poderá estar num lugar, com sensores instalados no corpo, e o médico executará e acompanhará o exame a distância. Com o telemonitoramento, o especialista poderá avaliar os exames e o estado de saúde dos pacientes remotamente, situação que pode ser muito importante para pacientes em áreas de difícil acesso, com doenças crônicas em home care ou idosos em casa de repouso, por exemplo.
A vertente a favor da telemedicina acredita no aumento da praticidade, redução de custos e ampliação de acesso dos pacientes às consultas e diagnósticos, por exemplo. No entanto, a linha contrária questiona se com os recursos promovidos pela inteligência artificial e com a distância física proporcionada pela tecnologia, haveria ainda espaço para uma comunicação completa entre médico e paciente, entendida como uma variável fundamental para a adequada conduta médica e melhora na condição do paciente.
Inteligência Artificial no diagnóstico
Segundo informações da Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial, cerca de 75% a 80% das decisões médicas baseiam-se em exames de diagnóstico, sendo incostestável a importância destes para a conduta médica a ser adotada.
A inteligênia artificial (IA) na medicina diagnóstica, vem com o intuito de acelar e tornar mais preciso o diagnóstico de pacientes, antecipar desfechos e indicar tratamentos e ações médicas por meio da criação de “algoritmos inteligentes”. Além disso, a inteligênia artificial será capaz de melhorar processos internos dos serviços de saúde, como laboratórios, consultórios e hospitais, permitindo ganho de eficiência na investigação diagnóstica e redução de disperdício de recursos.
Para se ter idéia sobre como funciona a inteligênia artificial, os especialistas alimentam o sistema com uma quantidade grande de dados e o computador “aprende” algoritmos, encontrando rapidamente padrões e fazendo associações para analisar os casos e auxiliar o médico a realizar o diagnóstico e tomar decisões mais acertadas e confiáveis. Para uma análise completa e confiável é necessária a verificação de um grande volume de informações que, quando feita por meio da inteligênia artificial, é realizada numa velocidade que um ser humano demoraria muito tempo para concluir ou jamais poderia fazer.
A inteligência artificial já vem sendo estudada e implementada em diversas áreas da medicina, como por exmplo, nos exames radiológicos e identificação da retinopatia diabética. No futuro próximo, é provável que cada vez mais especialistas façam uso do diagnóstico sugerido por programas de inteligência artificial como apoio a decisões e condutas a serem tomadas.
Digitalização do histórico de saúde do paciente
O objetivo da digitalização do histórico do paciente é reunir em um só sistema todas as informações da trajetória médica de um indivíduo, como por exemplo, resultados de exames, consultas médicas, cirurgias, internações, medicamentos utilizados e outras atividades médicas durante a vida do paciente.
O benefício de ter as informações da “história da saúde do paciente em um só lugar” implica diretamente na maior produtividade, na otimização de recursos e no melhor atendimento ao paciente, uma vez que as informações relevantes não estariam mais fragmentadas em diferentes serviços de saúde e atividades médicas desnecessárias ou repetitivas poderiam ser evitadas.
Ainda que a vantagem de concentrar os dados do paciente em um único sistema seja clara, assim como na inteligência articifical ainda há muita preocupação quanto à proteção dos dados disponibilizados sobre o paciente e sua saúde, ou seja, sobre quem pode acessá-lo e em que condições. A lei geral de proteção de dados que entrará em vigor em 2020 prevê que o compartilhamento das informações de saúde dependa do consentimento do paciente.
Regularização de software como dispositivo médico perante a Anvisa
Atualmente, a Anvisa regulamenta os dispositivos médicos no pré-mercado por meio da Resolução RDC nº 185, de 22 de janeiro de 2001, que trata do registro, alteração, revalidação e cancelamento do registro de produtos médicos. No entanto, esta norma foi elaborada de acordo com o contexto do ano de 2001, quando os equipamentos eram basicamente hardwares específicos com softwares embarcados.
Diante das novas necessidades e a tendência de “virtualização” dos equipamentos e procedimentos médicos, os dispositivos médicos passaram a se “virtualizar” a passos exponenciais, fato este que fez com que a referida regulamentação tenha se tornado obsoleta para os softwares como dispositivos médicos, tais como os softwares de processamento de imagens para diagnósticos, softwares de diagnóstico em saúde, software de planejamento de radioterapia e, até mesmo, certos aplicativos para celular e tablet que podem ser considerados softwares como dispositivos médicos.
Com o objetivo de solucionar essa lacuna regulatória, o tema “Regularização de softwares médicos” foi incluído na Agenda Regulatória da Anvisa para o quadriênio 2017-2020 (Tema 8.5), tendo como principal motivador, a elaboração de uma regulamentação específica contendo requisitos aplicáveis aos software como dispositivos médicos ou SaMD – Software as Medical Device, como são internacionalmente conhecidos.
O software como dispositivo médico tem sido tema de discussões no âmbito do International Medical Device Regulators Forum (IMDRF), do qual a Anvisa faz parte em busca da harmonização de seus regulamentos. Recentemente, a agência fez parte de uma reunião junto ao IMDRF sobre inteligência artificial, software como dispositivo médico e os diversos modos de aplicação das novas tecnologias, além de aspectos como segurança de dados e qualidade, demonstrando alinhamento em relação ao tema.
O tema é desafiador e está em debate entre a Anvisa e o setor regulado, uma vez que que se faz necessário definir escopo e classificação de risco, estabelecer mecanismos para ações sanitárias, tratamento de diferentes sistemas e riscos cibernéticos de softwares como dispositivos médicos.
Após a realização do Diálogo Setorial sobre o tema, ocorrido em 18 de setembro de 2019 no auditorio da Anvisa, os próximos passos serão a proposição junto ao grupo da ABNT (CB/26 – Subgrupo de Software Médico) de possível termo redacional para a norma e, posteriormente, publicação de Consulta Pública para a regulamentação e guia orientativo. A versão final da norma está prevista para o primeiro trimestre de 2020 e treinamentos para profissionais da área e alertas sobre a necessidade de notificação de eventos adversos e denúncias, devem acontecer ao longo de 2020.
Para finalizar, é visível que as necessidades médicas e dos pacientes mudam constantemente no passo da evolução tecnológica. Os temas acima citados são de suma relevância para o aumento da produtividade, otimização de
recursos e sustentabilidade do setor de saúde, e acima de tudo, para melhorar o atendimento e condição dos pacientes. Regulamentações que sejam capazes de acompanhar a tendência do mercado são fundamentais para a garanta de implementação rápida e segura de novas tecnologias e práticas médicas, priorizando-se sempre a saúde e segurança do paciente. Estamos ansiosos para contribuir e acompanhar os próximos capítulos destes assuntos que mudarão definitivamente, para melhor, a saúde no Brasil.

Patrícia Fukuma: É sócia e fundadora do escritório Fukuma Advogados, escritório altamente especializado na área regulatória-sanitária. Com agradecimento à colaboração de Ana Hasegawa e Camila Tavares.
Artigo disponível também na seção Direito e Saúde da Revista Newslab Ed 156.