Por Claudia Lima
Levantamentos recentes apontam que 70% dos erros descritos nos laboratórios estão relacionados à etapa pré-analítica, impactando custos e qualidade dos resultados. Para entender melhor o assunto, consultamos a biomédica Leila Brochi, MsC. especialista em ferramentas da qualidade, mestre em marketing de relacionamento na área da saúde, coordenadora de atendimento do Laboratório Médico Santa Luzia e auditora PALC.
Ela nos convida a perceber que, nos últimos anos, a etapa analítica dos laboratórios tem sido fundamentada em grandes empresas, principalmente multinacionais, disponibilizando metodologias e tecnologias de automação que tornaram essa etapa cada vez mais robusta, concreta e eficaz.
Já a fase pré-analítica se apresenta muito frágil e com maiores dificuldades por ser ainda considerada um procedimento manual, dependente de um grande número de colaboradores, com diferentes formações profissionais, que necessitam de treinamentos específicos relacionados às competências necessárias.
Acrescenta ainda que a menção dos 70% de erros considera apenas os laboratórios que têm estabelecido um CQ, porque os que não possuem não têm como saber se estão errando. Se não registram, não há indicadores; se não há indicadores, não há controle; portanto, não há como mapear, ficam de fora da estatística.
São vários os fatores da etapa pré-analítica que impactam os resultados dos exames, a começar pela decisão médica quanto aos testes laboratoriais a serem solicitados e o que esperar deles. Essa etapa depende do conhecimento por parte do profissional das diferentes patologias e dos exames disponíveis e mais indicados para evidenciar o diagnóstico de forma precoce ou monitorar adequadamente o paciente.
Além da escolha médica, o preparo prévio do paciente, a coleta, a centrifugação, o transporte e o armazenamento da amostra são decisivos para impactar a qualidade do laudo final.
O preparo adequado do paciente influencia diretamente o laudo do exame. Entre os principais erros encontrados na fase pré-analítica, os mais incidentes relacionam-se ao preparo inadequado do paciente e ao horário de realização da coleta da amostra. Na literatura científica, existem relatos documentando que esses erros ocorrem por omissão ou falta de conhecimento do paciente ou por falta de treinamento e capacitação do profissional.
“Este é um ponto de alta vulnerabilidade de um processo que necessita de confiança. A resposta do paciente tem de ser real e o laboratório deve confiar na sua informação”, afirma Leila.
O Programa de Acreditação em Laboratórios Clínicos (PALC) da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), versão 2016, reforça essa orientação e recomenda no item 8.3 que:
“O laboratório deve garantir que seus processos da fase pré-analítica considerem as necessidades dos pacientes e sigam diretrizes médicas ou protocolos cientificamente validados. O laboratório e os postos de coleta devem disponibilizar ao cliente ou responsável instruções claras, escritas em linguagem acessível, orientando sobre o preparo e coleta de materiais e amostras, quando o cliente for responsável pelos mesmos. Somente instruções simples, que não comprometam o preparo do cliente e que sejam facilmente compreensíveis, podem ser dadas verbalmente”.
Em relação à coleta de amostras, vários fatores atuam como interferentes na qualidade das amostras de sangue, como o tempo de contato prolongado do soro ou plasma com as células, a existência de hemólise em proporção variável, a temperatura incorreta de armazenamento das amostras, o uso incorreto dos anticoagulantes, o armazenamento inadequado, o transporte incorreto etc.
A maioria das amostras biológicas para a realização das análises laboratoriais requer uma centrifugação prévia para separar o soro ou o plasma das células sanguíneas. Na realização dessa fase, devem-se realizar procedimentos padronizados e baseados nos requisitos da qualidade para prevenir problemas que possam afetar as amostras biológicas, tais como: tempo inadequado para a completa coagulação da amostra, centrifugação incompleta, presença de fibrinas ou microcoágulos na amostra, presença de hemólise etc.
Já em relação ao transporte das amostras biológicas, muitos fatores podem ser considerados interferentes pré-analíticos. Nesse sentido, deve-se monitorar o acondicionamento das amostras, o período adequado para o transporte e a temperatura específica do transporte, entre outros.
Alguns dos fatores de suma importância no processo de coleta de amostras biológicas são o treinamento contínuo e a capacitação dos profissionais que realizam essa função, denominados coletadores, colhedores ou flebotomistas, de acordo com a região do Brasil em que atuam.
Um dos aspectos que dificultam a programação continuada de treinamentos e capacitação é, hoje em dia, a alta rotatividade na área de atendimento, por representar, na maioria dos casos, apenas uma etapa de transição profissional na vida do colaborador.
A busca de cursos como técnico de patologia clínica (SP) e técnico de enfermagem (Sul) surgem como opção de emprego, enquanto a escolha da profissão não está definida. Lembrando que o foco do curso técnico de enfermagem é para atuação em hospitais, no atendimento, no cuidar, sem formação para trabalhar em laboratório. É diferente da situação da área técnica, por exemplo, em que as pessoas possuem uma formação específica, uma graduação, uma opção de vida em ser um profissional farmacêutico/bioquímico ou biomédico.
Outro aspecto relevante sobre a dificuldade de capacitação percebido pela biomédica a partir de suas vivências como professora do curso de Farmácia da Unisul, que recebe alunos de cidades menores que vêm para a capital, é que eles desconhecem a existência de um processo de aprendizado pré-analítico. Consideram que se houver prática para pegar veia, já se trata de um coletador e isso em si é uma crença limitadora que cria resistência para o aprendizado. O coletador tem uma função com uma importância muito maior que essa. Ela reforça que é preciso ter conhecimento fundamentado para ser coletador e não limitar esse conceito. O grande trunfo é saber o porquê de cada procedimento, tipo de anticoagulante, volume específico, tempo, horário. Isso é conhecimento. É bom ter essa prática? Sim, claro, ela responde, e complementa afirmando que só a expertise em saber pegar veia não garante que seja um bom profissional da área.
“Atuar junto à equipe na gestão dos processos da fase pré-analítica é um orgulho para mim como profissional”
O termo flebotomista tem sido utilizado pelos colaboradores para definir o profissional especialista em coleta, mas Leila esclarece que pegar uma veia não define essa especialidade. Ensinar como pegar uma veia é mais fácil; ensinar o porquê de se fazer uma coleta daquela maneira é o mais difícil. Ela conclui dizendo que a grande incidência de falhas mapeadas pelos estudos e artigos científicos ocorre por desconhecimento das razões que envolvem um procedimento adequado.
“A fase pré-analítica envolve saber, conhecimento e pessoas. Esse é o gap.”
Sobre como atuar na redução deste alto percentual de erros pré-analíticos, a biomédica aponta o caminho: conhecimento e treinamento. Preparar os documentos, descrever o processo com eficiência, o chamado manual de coleta e, a partir do documento descritivo, iniciar a capacitação e o treinamento do coletador, acompanhando-o, verificando se ele está realmente capacitado, se ele tem competência. Reforça ainda a necessidade de um programa de educação continuada e monitoramento constante. Aí, sim, acredita ser possível formar uma equipe profissional e consistente.
Outro ponto a ser considerado ainda neste contexto de formação de equipe, levando em conta os esforços e o valor investido por parte do laboratório em educação contínua e que representa um grande desafio para as equipes gestoras, é a retenção dos colaboradores — manter a equipe construída com qualidade e diminuir a alta rotatividade do setor para quebrar o ciclo do treinar, capacitar, perder….
Conversamos também sobre o impacto do custo resultante do número elevado de erros na fase pré-analítica sobre a operação total do laboratório e Leila nos convida a refletir além. Uma falha de coleta implica chamar o paciente de volta para uma recoleta, estabelecer um novo prazo para liberação de resultado, sendo que ele já tem uma agenda de médicos pronta (o que hoje em dia não costuma ser fácil de conseguir), novo preparo de exame, gastos com deslocamento…
O custo financeiro da hora do coletador, do material de coleta, do retrabalho nas etapas de triagem, centrifugação e reprocesso é o menor, comparado ao impacto para o paciente, à insatisfação que causará nele, podendo gerar um atraso em seu retorno e retardando o seu diagnóstico. É dever do laboratório zelar pela segurança do paciente, olhar para ele, acolhê-lo.
Perguntamos como se estabelece o controle de qualidade da fase pré-analítica, quais os desafios de se definir as normativas num setor que utiliza técnicas ainda tão manuais, regido por comportamentos e fatores humanos num mercado de uma diversidade muito grande, em que os laboratórios no Brasil dispõem de recursos e condições muito diferenciadas.
Primeiro, Leila nos chama a atenção para o processo analítico, facilitado pelas automações no auxílio da gestão da qualidade, bem estruturado com recursos de calibração, controle interno, controle externo, o equipamento sinalizando por meio de flags, regras estatísticas de apontamento, profissionais da indústria dando suporte e treinamento técnico-científico.
Acrescenta que, no caso do pré-analítico, o controle de qualidade está baseado em monitorar, acompanhar, treinar. Não se trata de um processo subjetivo, uma vez que existem várias ferramentas para o CQ. No PALC, o artigo 8 é dedicado ao pré-analítico, diretriz seguida em checklist de procedimentos, em que cada etapa será monitorada e detalhada. Na presença de uma hemólise, por exemplo, é preciso entender o porquê e buscar ações corretivas para evitar essa incidência.
Ela reforça que o processo precisa ser mapeado e descrito. É preciso seguir um padrão e, como se trata de uma etapa que depende muito do recurso humano, as falhas acontecem. Então, será necessário minimizá-las, eliminá-las por meio de uma gestão presente com olhar atento e crítico sobre o processo para que seja enxuto e não falho, ágil o suficiente para evitar que determinada ação venha a ser um erro e acompanhar este colaborador, retreiná-lo, ver onde pode ser possível melhorar sua performance.
Ela entende que não se trata de um processo fácil, já que não é possível acompanhar todos ao mesmo tempo e por todo o tempo, mas é possível criar um processo consistente e coeso de trabalho para que, a partir dele, seja possível construir uma relação de comprometimento e confiança entre a gestão e o time.
Perguntamos como seria a área pré-analítica ideal de um laboratório. Leila sugere a que tem uma equipe preparada e consciente para conduzir um atendimento com respeito, vestindo a camisa e sabendo da grande importância que o coletador tem dentro dessa empresa. Esse colaborador não é UM coletador, é O coletador, porque ele começa o processo e deve estar comprometido para que não haja rompimento.
O laboratório pode até ter um sistema analítico máster, mas se não houver uma consciência da importância do início do processo para garantir uma amostra boa, todo o processo poderá estar comprometido. Ela complementa enfatizando a importância de os três processos estarem muito bem alinhados: pré, analítico e pós.
Seguimos conversando sobre como a indústria já caminhou muito em tecnologia e ela ressalta os avanços e contribuições para o setor pré-analítico. Hoje há esteiras que distribuem amostras por setores, robótica em sistemas integrados, softwares de gerenciamento do processo laboratorial e rastreabilidade da amostra em qualquer etapa do processo.
Há tubos a vácuo, tubos com possibilidade de trabalhar por aspiração, que acontece de uma forma mais lenta e melhor, evitando a hemólise. Um único tubo para realizar vários exames. Gel separador que, após a centrifugação, joga a papa de hemácia para baixo e o soro para cima, não mistura, não tem hemólise. Erros de troca de tubo de um paciente para outro no momento da aliquotagem foram eliminados com a possibilidade de se trabalhar com o tubo primário. A própria indústria de materiais de coleta fornece suporte, ministrando cursos de capacitação para o uso adequado de seus produtos.
Etiquetas de códigos de barra representaram um avanço incrível, contendo todos os dados do paciente — nome completo, idade, sexo, exames, medicamentos. Existem leitores de código de barras para rastreamento de amostra e identificação do colaborador e horário. Ela nos diz que tudo isso trouxe muitas melhorias, mas que temos ainda situações bastante precárias, cidades pequenas onde laboratórios ainda trabalham com identificação de amostra sem padronização, coleta de sangue realizada com seringa e transferência para o tubo, processo que causa hemólise, rompe células, vários furos no paciente para coletar um volume maior de sangue, além do aumento do risco de contaminação. Fala também da importância em investir em tecnologia para a melhoria do processo e qualidade.
A especialista comenta que já percebe os laboratórios se abrindo para a preocupação com essa fase do processo laboratorial, mas, na sua visão, o foco ainda está muito voltado para a área técnica. Os laboratórios pequenos sonham com a automação da fase analítica, mas estão começando a despertar para a fase pré.
Quando tentamos pensar num modelo de laboratório ideal para a área pré-analítica, Leila esclarece que um laboratório ideal não necessariamente tem a ver com o processo de estar todo automatizado, mas sim com o comprometimento e o preparo dos colaboradores, seguindo os protocolos de qualidade. Felizmente, é possível encontrar laboratórios pequenos, semiautomatizados, cuidando de todas as partes do processo com excelência. O fato de não ser um laboratório grande e automatizado não quer dizer que não seja possível fazer a coisa certa.
Falamos muito sobre a coleta de sangue e ela ressalta a importância da qualidade na coleta de outros fluidos biológicos. A coleta de urina, por exemplo, é muito importante. Uma contaminação da amostra pode levar o paciente a uma sobrecarga desnecessária de antibióticos. Coletas de materiais ginecológicos devem obedecer aos locais exatos para que sejam específicas.
Uma coleta de amostra de sangue comprometida tem grande chance de ser barrada no processo analítico, por meio dos flags dos equipamentos que rejeitam essa amostra. Uma coleta de urina ou de material ginecológico incorreta vai impactar diretamente o paciente.
Para fechar, perguntamos se é possível definir o que é uma amostra de qualidade.
Leila responde: “É aquela obtida sem nenhuma interferência e que representa a real situação do paciente”.
“O ideal é capacitar, monitorar pessoas e possíveis erros, melhorar o processo sempre com educação continuada e evitar o turnover de colaboradores para que você tenha de fato uma equipe capacitada.”
ETAPAS DO PROCESSO LABORATORIAL
- PRÉ-ANALÍTICA: inclui vários procedimentos, como a indicação e solicitação do exame, o preparo prévio do paciente, a coleta, a centrifugação, o transporte e o armazenamento da amostra, finalizando com a entrada no setor técnico, onde a amostra será processada.
- ANALÍTICA: inclui a calibração, o controle, o processamento dos exames e a liberação de resultados.
- PÓS-ANALÍTICA: inclui a validação do resultado gerado na área analítica, a emissão de laudo, o armazenamento e a gestão das amostras analisadas (soroteca).
Leila Brochi – Biomédica, MsC. especialista em ferramentas da qualidade, mestre em marketing de relacionamento na área da saúde, professora do curso de Farmácia na Unisul, coordenadora de atendimento do Laboratório Médico Santa Luzia e auditora externa do PALC.