Artigo disponibilizado pelo Grupo DASA
Por Drª. Audrey Krüse Zeinad Valim*
O tromboembolismo venoso (TEV), doença multifatorial secundária a uma interação dinâmica entre fatores de risco adquiridos e hereditários (tabela 1), é a terceira causa de mortalidade por doença cardiovascular na população geral do mundo ocidental, e a primeira causa de óbito em mulheres durante o puerpério e em indivíduos no período pós-operatório. A incidência de fenômenos de TEV é de aproximadamente 1,9 por 1.000 indivíduos/ano, que se eleva com a idade. A morbidade associada a essa condição não é menos importante: a recorrência incide em até um terço dos indivíduos em um período de dez anos, com maior risco nos primeiros seis a 12 meses, nos eventos idiopáticos e nos homens. Os eventos de TEV também podem estar relacionados à morbidade significativa, como a síndrome pós-trombótica e a hipertensão pulmonar.
Fatores de risco para trombose venosa | ||
Adquiridos | Hereditários | Mistos/Desconhecido |
Idade | Deficiência de AT | Hiper-homocisteinemia |
TEV pregresso | Deficiência de PC | Elevação FVIII |
Imobilização/Hospitalização | Deficiência de PS | APC |
Grande cirurgia/Trauma | FV Leiden | Elevação FIX |
Cirurgia ortopédica | Protrombina G20210 A mutante | Elevação FXI |
Neoplasia | Disfibrinogenemia | Elevação TAFI |
Pílula anticoncepcional/TRH | ||
Viagem prolongada | ||
Cateter venoso central | ||
Gestação/Puerpério | ||
Doença varicosa | ||
Síndrome antifosfolípide | ||
Doenças mieloproliferativas | ||
HPN entre outros |
TEV: tromboembolismo venoso; TRH: terapia de reposição hormonal; HPN: hemoglobinúria paroxística noturna; AT: antitrombina; PC: proteína C; PS: proteína S; APC: resistência à proteína C ativada; e TAFI: inibidor da fibrinólise ativado pela trombina.
Por meio do crescente avanço no entendimento dos mecanismos fisiológicos e fisiopatológicos do sistema hemostático, a identificação dos fatores causais nos indivíduos com TEV é cada vez maior. Atualmente, um ou mais fatores de risco, adquiridos ou hereditários, são identificados em até 80% dos eventos, e em grande parte dos casos mais de um fator está presente.
As trombofilias, definidas como tendência ao desenvolvimento de trombose, em um contexto de alterações adquiridas e hereditárias, podem desempenhar um papel na avaliação desse risco, e, em alguns casos selecionados, a investigação e o diagnóstico auxiliam na estimativa do risco de recorrência, na justificativa ao menos parcial para o evento tromboembólico, no aconselhamento de familiares afetados e na duração da terapia anticoagulante.
O termo trombofilia hereditária é definido como uma tendência para a TEV geneticamente determinada. A deficiência do anticoagulante natural antitrombina (AT) foi a primeira trombofilia hereditária a ser descrita (Egeberg, 1965). Posteriormente, em 1981 e 1984, famílias com tendência trombótica e associação com deficiências dos anticoagulantes naturais, proteína C (PC) e proteína S (PS) foram relatadas. Na década de 1990, outras duas alterações do sistema hemostático associadas a ganho de função de fatores pró-coagulantes foram descobertas: a mutação FV Leiden (FVL) e o FII G20210A (protrombina mutante: PTM). Em inúmeros outros estudos publicados mais recentemente, outros fatores de risco têm sido descritos, porém, com relação causal cada vez menos evidente, como indivíduos com níveis elevados de alguns fatores da coagulação (FVIII, FIX e FXI) e de Tafi (inibidor da fibrinólise ativado pela trombina).
A relação entre o risco relativo (RR) de TEV e determinada trombofilia é inversamente proporcional ao tempo decorrido após o seu descobrimento: quanto mais antiga a descrição da trombofilia, maior o risco de TEV e mais rara a sua prevalência na população geral. A deficiência heterozigota de AT, PC ou PS, e a presença de FV Leiden heterozigota elevam o risco relativo de TEV por volta de cinco a 20 vezes (menor no FVL e maior na AT).
Dentre as trombofilias adquiridas, a síndrome antifosfolípide (SAF) e a hiper-homocisteinemia são as mais pesquisadas. A SAF primária é a causa mais comum de trombofilia adquirida. A existência de anticorpos com reatividade a fosfolípides foi inicialmente descrita em indivíduos que apresentavam resultados falsos-positivos no teste sorológico para a sífilis (direcionados ao fosfolípide cardiolipina presente no reagente). Laurell e Nilsson, em 1957, descreveram uma associação entre um anticoagulante circulante, teste para sífilis falso-positivo e perda gestacional recorrente. A associação paradoxal do prolongamento de tempos de coagulação dependentes de fosfolípides e fenômenos tromboembólicos foi descrita em 1963 por Bowie, e então o termo anticoagulante lúpico foi proposto em 1972, após descrição de associação desse “anticoagulante” em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES).
A hiper-homocisteinemia, presente em 5% a 7% da população geral, pode ser consequente a algumas alterações genéticas ou adquiridas (respectivamente, pela mutação da enzima metilenotetraidofolato redutase [MTHFR], por exemplo, e as deficiências de B6, B12 e folato). A elevação em seus níveis plasmáticos está relacionada à doença aterosclerótica vascular ou a eventos de TEV.
Dados clínicos
As trombofilias podem ser clinicamente evidentes por meio de alguns achados característicos (tabela 2) e sítios de acometimento vascular variáveis (tabela 3).
Tabela 2: Características clínicas das trombofilias hereditárias/primárias
Trombofilias hereditárias/Primárias |
Idade < 40 anos |
Eventos idiopáticos |
Episódios recorrentes |
Sítios incomuns de acometimento |
História familiar (>= 2 familiares) |
Tabela 3
Sítios de acometimento vascular das trombofilias | |
Trombose venosa | Trombose arterial |
Deficiência de AT | SAF |
Deficiência de PC | Hiper-homocisteinemia |
Deficiência de PS | Elevação FVIII |
FV Leiden | Doenças mieloproliferativas |
Protrombina G20210A mutante | HPN |
SAF | |
Hiper-homocisteinemia | |
Elevação FVIII | |
Doenças mieloproliferativas | |
HPN | |
Disfibrinogenemia |
A incidência global das trombofilias hereditárias em indivíduos com trombose venosa profunda varia de 24% a 37% (Bauer, 2001), sendo o FV Leiden responsável por 40% a 50% desses casos. Os defeitos dos anticoagulantes naturais (AT, PC e PS) combinados são responsáveis por menos de 5% dos episódios em indivíduos com primeiro evento de TEV.
A prevalência de SAF em indivíduos com TEV é de 5% a 21%. A trombose venosa profunda (TVP) é o sítio mais prevalente, mas esses pacientes podem apresentar quadro clínico inicial de acidente vascular encefálico isquêmico, doença arterial coronária ou trombose venosa cerebral. Os eventos de trombose, espontâneos ou associados a fatores de risco, são relacionados a anticorpos antifosfolípides. A síndrome também pode se manifestar por meio de morbidade gestacional (tabela 4). Dezesseis por cento a 38% das pacientes com perdas gestacionais recorrentes apresentam anticorpos antifosfolípides. As gestantes com SAF também possuem risco de desenvolvimento de TEV durante a gestação e o puerpério.
Tabela 4
Critérios de Sapporo modificados para a classificação da SAF |
Critérios Clínicos
1. Trombose vascular a. Um ou mais episódios de trombose arterial, venosa ou de pequenos vasos em qualquer órgão ou tecido. 2. Morbidade gestacional a. Uma ou mais mortes inexplicadas de fetos morfologicamente normais >= 10 semanas de gestação, com morfologia fetal normal documentada por USG ou exame direto do feto ou; b. Um ou mais partos prematuros de neonato morfologicamente normal <= 34 semanas de gestação devido à pré-eclampsia grave ou eclampsia, ou insuficiência placentária grave ou; 3. Três ou mais abortos espontâneos consecutivos < 10 semanas de gestação, sem alterações maternas anatômicas ou hormonais, após exclusão de alterações cromossômicas maternas ou paternas. |
Critérios Laboratoriais
1. Anticorpos anticardiolipina IGG e/ou IGM no plasma, com título superior a 40 GpL ou MpL ou superior ao percentil 99 em duas ou mais ocasiões com intervalo igual ou superior a 12 semanas 2. Presença de anticoagulante lúpico no plasma em duas ou mais ocasiões com intervalo igual ou superior a 12 semanasa; 3. Anticorpos anti β2-GP-I IGG ou IGM em título superior ao percentil 99 em duas ou mais ocasiões com intervalo igual ou superior a 12 semanas. |
Detecção de acordo com o guideline da Sociedade Internacional de Hemostasia e Trombose: O diagnóstico da SAF é definido após a presença de pelo menos um critério clínico e um critério laboratorial.
Os anticorpos antifosfolípides estão presentes na população normal em 3% a 10% de indivíduos assintomáticos. Eles podem ser detectados após certas infecções, exposição a algumas medicações ou em associação com doenças autoimunes, como o LES.
Avaliação inicial
Os indivíduos com quadro clínico sugestivo de trombofilia devem ser abordados da mesma maneira que os indivíduos com eventos tromboembólicos de maneira geral. A investigação de trombofilia não deve ser feita na fase aguda do fenômeno vaso-oclusivo, e sim apenas após três a seis meses do evento.
Na avaliação inicial dos indivíduos com história de TEV, deve-se considerar alguns fatores: o sítio de acometimento; os eventos desencadeantes, como pós-operatório, uso de hormônios, viagem prolongada, neoplasia associada, doenças concomitantes, imobilidade, história obstétrica, entre outros; e exames diagnósticos que comprovem o evento, idade no momento do evento e história familiar.
Prognóstico
Apesar da investigação de trombofilia ser útil em algumas situações clínicas particulares, estudos recentes demonstram que a pesquisa de trombofilia em pacientes com primeiro evento de TEV raramente muda a incidência de recorrência na prática clínica (exceção feita para o diagnóstico de SAF). A recorrência de eventos tromboembólicos é significativa naqueles indivíduos com evento idiopático, independentemente da presença de estado hipercoagulável associado. Isso ocorre porque as trombofilias com baixo risco de recorrência são as mais incidentes na população, e existem efeitos colaterais (como os eventos hemorrágicos) que devem ser considerados quando se aumenta a intensidade ou duração da anticoagulação. Entretanto, se existe associação de trombofilias, defeito homozigoto, SAF ou deficiência de AT, o benefício da anticoagulação prolongada é maior, devido à elevada taxa de recorrência de fenômenos tromboembólicos nessas circunstâncias (tabela 5). Os defeitos heterozigotos compostos ou homozigotos podem elevar o risco relativo de TEV em até 50 a 80 vezes, segundo alguns estudos.
Tabela 5
Considerar anticoagulação por tempo indefinido |
2 ou mais tromboses idiopáticas ou 1 trombose espontânea associada à SAF ou à deficiência de AT |
1 trombose idiopática com risco de morte (TEP maciço, trombose cerebral, mesentérica ou portal) |
1 trombose idiopática em sítio incomum (por exemplo, mesentérica) |
1 trombose idiopática e diagnóstico de trombofilias combinadas ou defeito homozigoto |
Guia rápido sobre pesquisa de trombofilias
Porque realizar a pesquisa de trombofilias hereditárias?
Em alguns casos selecionados, a investigação e o diagnóstico das trombofilias hereditárias podem auxiliar na justificativa (ao menos parcial) para o evento de TEV, no aconselhamento de familiares afetados e na decisão da duração da terapia anticoagulante.
Quando suspeitar de seu diagnóstico?
Os elementos que sugerem o diagnóstico de trombofilias hereditárias são:
- Tromboses recorrentes;
- Tromboses em sítios incomuns (trombose venosa cerebral, trombose esplâncnica);
- Indivíduos jovens;
- Acometimento familiar;
- Eventos tromboembólicos idiopáticos.
Quais são as principais trombofilias hereditárias?
As trombofilias hereditárias mais comumente pesquisadas são a mutação FV Leiden (FVL), a mutação da protrombina (PTM) e a deficiência dos anticoagulantes naturais proteína C (PC), proteína S (PS) e antitrombina (AT).
As trombofilias hereditárias apresentam risco similar para o desenvolvimento de TEV?
Não. Como as mutações por ganho de função (FVL e PTM) têm maior representação na população (incidência na população geral, assintomática, de até 5%, ao contrário das deficiências dos anticoagulantes naturais, que em conjunto acometem menos de 5% da população com TEV), e menor risco relativo de TEV (RR de até 5), a probabilidade de associação de fatores, genéticos e ambientais, como causadores dos eventos é maior nos indivíduos com as mutações FVL e PTM.
Como deve ser o tratamento do episódio agudo de tromboembolismo venoso na suspeita de trombofilia hereditária?
O tratamento inicial dos pacientes com TEV e a suspeita de trombofilias hereditárias não diferem do tratamento dos pacientes com TEV em geral.
Em que momento a pesquisa de trombofilias hereditárias deve ser realizada?
A fase aguda do evento de TEV pode interferir nos níveis plasmáticos dos componentes do sistema hemostático. Como o tratamento inicial não é diferente, a pesquisa de trombofilias deve ser realizada somente após três a seis meses do evento tromboembólico.
Quais são as situações clínicas ou o uso de medicações que podem interferir nos resultados da pesquisa, resultando em falsos-positivos?
– O uso de antagonistas de vitamina K, assim como o uso de anticoagulantes orais diretos, pode interferir nos resultados. A PC e a PS são dependentes de vitamina K, e, portanto, o seu nível plasmático está reduzido se o indivíduo a ser pesquisado estiver utilizando um antagonista de vitamina K, por exemplo.
– As heparinas, tanto as de baixo peso molecular como as não fracionadas, reduzem os níveis de antitrombina. As heparinas, como anticoagulantes indiretos, são potencializadores da AT e necessitam da sua ação para exercer o seu efeito anticoagulante.
– A grande maioria dos componentes do sistema hemostático tem síntese hepática, e, portanto, pacientes com insuficiência hepática podem apresentar redução nos valores de PC, PS e AT.
– A gestação e o puerpério, o uso de contraceptivos hormonais orais e a terapia de reposição hormonal reduzem os níveis de proteína S total e livre.
– A proteína S total sofre interferência dos estados inflamatórios. Ela pode se ligar à proteína componente do complemento C4b. Para a pesquisa de deficiência de PS, a PS livre deve ser o método diagnóstico de escolha.
– Os níveis plasmáticos de PC, PS e AT podem estar reduzidos na coagulação intravascular disseminada (CIVD), por consumo.
Referências
- Favaloro EJ, McDonad D, Lippi G. Laboratory Investigation of Thrombophilia: The Good, the Bad, and the Ugly. Semin Thromb Hemost 2009;35(7):695-710.
- Bounameaux H. Overview of Venous Thromboembolism. In: Colman RW, Hirsh J, Marder VJ et al. Lippincott. 5º edição. Hemostasis & Thrombosis. Basic Principles & Clinical Practice.2006 Chapter 82 p1219-1226.
- Deitcher SR, Rodgers GM. Thrombosis and Antithrombotic Therapy. In: Greer J, Foerster J, Lukens JN, Rodgers GM, Paraskevas F, Glader B. Lippincott. 11º edição. Wintrobe’s Clinical Hematology 2004. Chapter 61.
*Drª. Audrey Krüse Zeinad Valim:
- Médica assessora em hematologia-hemostasia da DASA;
- Doutora em hematologia pela Faculdade de Medicina da USP;
- Chefe do ambulatório de hemostasia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.