Introdução
A sepse pode afetar qualquer pessoa, a qualquer momento. É uma doença potencial que altera o estilo de vida levando a importantes consequências individuais e sociais. A sepse causa mais mortes anualmente do que o câncer de pulmão, de colo e de mama combinados; e sobreviventes à sepse podem experimentar ao longo da vida déficits impactantes que incluem, mas não se limitam, a sintomas do tipo transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) e amputações.1,2
É de grande preocupação que a incidência da sepse tenha crescido na última década: aproximadamente 1,5 milhões de casos são diagnosticados anualmente nos EUA, contribuindo para uma enorme carga de assistência médica em mais de $80 bilhões/ano.3,5
Os dados nacionais disponíveis apontam para uma elevada letalidade, sobretudo em hospitais públicos vinculados ao Sistema Único de Saúde. Infelizmente, o número de casos de sepse no Brasil não é conhecido. Um estudo de prevalência de um só dia em cerca de 230 UTIs brasileiras, aleatoriamente selecionadas de forma a representar de maneira adequada o conjunto de UTIs do País, aponta que 30% dos leitos de UTIs do Brasil estão ocupados por pacientes com sepse ou choque séptico.25
O diagnóstico da sepse pode ser desafiador, uma vez que, muitas doenças infecciosas, não-infecciosas e algumas desordens orgânicas podem compartilhar sintomas clínicos ou hemodinâmicos.6 Atualmente, existem poucos biomarcadores que podem auxiliar no diagnóstico da sepse, e a maioria dos marcadores disponíveis, como contagem de glóbulos brancos, proteína C reativa, temperatura corporal e lactato são inespecíficos para sepse.7,8 Como resultado, a sepse pode não ser diagnosticada por horas ou até dias, porém estudos indicam claramente que a rápida iniciação de antibióticos e suporte hemodinâmico são essenciais para um tratamento de sucesso e minimização de morbidade e mortalidade.9
Não é de se admirar, então, que muitos pesquisadores fiquem dedicados para o desenvolvimento de métodos específicos e sensíveis para o diagnóstico da sepse. A procalcitonina (PCT), o pró-hormônio da calcitonina, se tornou conhecida como marcador de infecção bacteriana em 1983 logo após a hipercalcitonemia ser observada em crianças com doença meningocócica fulminante por Mallet et al.10 Após quatro décadas de extensos estudos clínicos, a PCT agora é reconhecida como um marcador para avaliar o risco e a progressão da sepse, e como uma ferramenta para orientar a antibiótico terapia. Os três artigos que compõem este compêndio abordam o uso da PCT em diferentes cuidados clínicos para patologias de gravidades variáveis, e fornecem evidências do seu benefício financeiro. Cada artigo ilustra um aspecto significativo do uso da PCT, ainda que represente apenas a ponta do iceberg dos milhares de artigos publicados deste biomarcador.
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Valor diagnóstico da procalcitonina, interleucina-6 e interleucina-8 em pacientes críticos admitidos com suspeita de sepse
Harbarth S, Holeckova K, Froidevaux C, et al. Am J Respir Crit Care Med 2001;164:396-402. DOI: 10.1164/ajrccm.164.3.2009052
Objetivo
Comparar a capacidade diagnóstica e prognóstica da procalcitonina (PCT) com interleucinas inflamatórias e marcadores rotineiros de cuidados intensivos de inflamação, estabilidade hemodinâmica e acidose para identificação de sepse em pacientes críticos.
Métodos
• Marcadores medidos prospectivamente em 78 pacientes admitidos com síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e suspeita de infecção.
• Os marcadores foram avaliados utilizando uma variedade de métodos estatísticos.
Resultados
• Diagnóstico final: SIRS (n = 18), sepse (n = 14), sepse severa (n = 21) e choque séptico (n = 25).
• A PCT discriminou SIRS, sepse, sepse severa e choque séptico mais adequadamente do que qualquer um dos outros marcadores.
• A sensibilidade, valor preditivo positivo (VPP) e valor preditivo negativo (VPN) da PCT para diferenciar SIRS e todos os níveis de sepse foram mais favoráveis que os outros marcadores investigados nesse estudo. A especificidade também foi tão boa quanto ou até mais assertiva que os outros marcadores.
• A concentração média de PCT aumentou com a gravidade da doença.
• De acordo com a análise ROC, o uso de PCT com um ponto de corte de 1,1 ng/mL melhorou a capacidade de prever a probabilidade de sepse.
Conclusões dos autores
“Elevadas concentrações de PCT parecem ser um indicador de sepse em recém-admitidos e pacientes críticos, e são capazes de complementar sinais clínicos e parâmetros laboratoriais de rotina sugestivos de infecção grave”.
Este artigo demonstra que, para pacientes criticamente doentes no momento da admissão, a PCT em combinação com os sinais e sintomas fornece um poder discriminativo mais adequado para diferenciar fontes não bacterianas de inflamação e infecção bacteriana associadas à sepse do que apenas a avaliação clínica, também evidenciou que há concordância entre a elevação da PCT e a evolução da gravidade da sepse e como as concentrações séricas da PCT elevam-se muito cedo na infecção podem fornecer informações importantes ao clínico muito tempo antes que os resultados da cultura.
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Valor prognóstico da procalcitonina em infecções do trato respiratório em contextos clínicos
Kutz A, Briel M, Christ-Crain M, et al. Crit Care 2015;19:74. DOI: 10.1186/s13054-015-0792-1
Objetivo
Investigar o valor prognóstico dos níveis basais de PCT para prever falha do tratamento ou morte em uma população de pacientes com uma grande variedade de níveis de infecções respiratórias agudas (IRA). O valor prognóstico foi avaliado por meio clínico (cuidados primários, departamento de emergência (DE), UTI) para pacientes com diferentes graus de gravidade da infecção.
Métodos
• Meta-análise de dados de 14 estudos randômicos ou quase randômicos, projetados para avaliar a segurança e a eficácia da antibioticoterapia guiada pelo PCT. Pacientes adultos com IRA (n = 4.211: 1.008 cuidados primários; 2,605 DE; 598 UTI).
• A falha do tratamento em 30 dias foi definida de acordo com o ambiente clínico:
– Atenção Primária: hospitalização, complicações de IRA, recorrência ou piora da infecção, qualquer sintoma de IRA em andamento.
– Departamento de Emergência: Internação em UTI, re-internação, complicações da IRA ou recorrência ou piora da infecção.
• A capacidade discriminatória da PCT de prever falha do tratamento ou a mortalidade para cada cenário foi classificada pela probabilidade (odds ratio OR) da falha do tratamento ou a mortalidade & o sucesso do tratamento.
• A análise ROC foi usada para determinar os pontos de corte.
• Sensibilidade, especificidade, VPN e VPP foram usados para estimar a previsão de risco para diferentes subgrupos do IRA usando pontos de corte estabelecidos clinicamente de 0,1 ng/mL, 0,25 ng/mL, 0,5 ng/mL, e 2,0 ng/mL.
Resultados
• Os níveis de PCT em pacientes admitidos no DE com IRA foi um preditor da probabilidade de falha do tratamento e mortalidade. Foram observadas diferenças nos níveis de PCT entre pacientes da atenção primária e pacientes de UTI, mas não foram estatisticamente significantes.
• O valor prognóstico de PCT foi significativo para infecções do trato respiratório inferior (ITRI), classificadas como pneumonia adquirida na comunidade (PAC), bronquite ou exacerbação DPOC (EDPOC); mas não para IRA superior, exceto na falha do tratamento de resfriado comum.
• Níveis elevados de PCT em pacientes do DE com ITRI indicaram um aumento na probabilidade de falha do tratamento (OR = 1,85, AUC = 0,64) e mortalidade (OR = 1,82, AUC = 0,67) P = <0,001 para ITRI total, PAC e EDPOC.
• Para pacientes admitidos no DE com ITRI, a PCT <0,25 ng/mL o VPN foi de 89,2% para falha no tratamento e 97,5% do VPN para mortalidade, sugerindo que pacientes com baixa concentração de PCT na admissão tem baixo risco de falha do tratamento ou morte.
Conclusões dos autores
“Os níveis de PCT podem ajudar a prever a probabilidade de falha do tratamento ou mortalidade em pacientes com ITRI admitidos no DE”.
Este artigo demonstra que a admissão de PCT tem valor prognóstico para ITRI no DE, ao utilizar a PCT para pacientes com ITRI no DE, poderá auxiliar o corpo clinico em estabelecer o risco inicial de falha do tratamento (ou seja, agravamento ou doença recorrente) e mortalidade, que pode ajudar a orientar a tomada de decisões gerais sobre cuidados e alertar os médicos sobre a possível necessidade de maior vigilância.
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Efeito do tratamento com antibióticos guiados pela procalcitonina na mortalidade em infecções respiratórias agudas: uma Metanálises com pacientes
Schuetz P, Wirz Y, Sager R, et al. Lancet Inf Dis. 2018;18:95-107. DOI: 10.1016/s1473-3099(17)30592-3
Objetivo
Determinar se a PCT pode ser usada com segurança em diferentes contextos clínicos para orientar a prescrição de antibióticos em pacientes com infecções respiratórias agudas.
Métodos
• Estudo Metanálises randomizados dos dados de pacientes, realizado nos EUA e em outros 11 países, a partir de 26 centros de triagem controlado.
• Os grupos de pacientes foram derivados dos dados publicados de estudos em que adultos que necessitam de cuidados para qualquer tipo de infecção respiratória superior ou inferior, foram aleatoriamente designados para um grupo de tratamento guiado por PCT ou para uma coorte que recebeu tratamento padrão.
• O valor de orientação da PCT foi avaliado com base na mortalidade em 30 dias e falhas específicas de tratamento (atenção primária/DE ou hospital/UTI). A falha no tratamento para a atenção primária ou grupos do DE ou do hospital definidos como o de Kutz et al. O tratamento na UTI foi definido como infecção recorrente ou agravada.
• A orientação do uso da PCT também foi avaliada para determinar seu impacto na redução do uso inapropriado de antibióticos, tempo de internação e desenvolvimento de efeitos colaterais de antibióticos.
Resultados
• Uma pequena diferença, do ponto de vista estatístico, foi observada na mortalidade em 30 dias quando o PCT foi usado para orientar a antibiótico terapia, independentemente do tipo de infecção ou situação (DE, cuidados agudos ou ambulatorial).
• A porcentagem de pacientes que passaram por tratamento falho foi um pouco menor no grupo cujo cuidado foi guiado pela PCT, mas essa diferença não foi estatisticamente significante.
• Em média, pacientes cuja terapia foi guiada pelos níveis de PCT reduziram cerca de 2 a 4 dias o uso de antibióticos comparados com aqueles cujos cuidados foram baseados na prática padrão.
• Um menor número de pacientes cujos cuidados foram guiados por PCT tiveram efeitos colaterais relacionados à antibióticos comparados aqueles que receberam tratamento padrão.
Conclusões dos autores
“O uso de procalcitonina para guiar o tratamento com antibióticos em pacientes com infecções respiratórias agudas, reduz a exposição a antibióticos e efeitos colaterais e melhora a sobrevida”.
Este estudo demonstra que o uso de protocolos guiados pela PCT para iniciação, retirada e descontinuação da antibioticoterapia em pacientes com IRA tem o potencial de melhorar o tratamento com antibióticos, tornando assim melhorado o manejo dos antibióticos levando a efeitos positivos nos resultados clínicos reduzindo a ocorrência de efeitos adversos dos antibióticos além de evitar e reduzir a ameaça de desenvolvimento de organismos resistentes a múltiplos antibióticos que estão associados ao aumento da morbidade, mortalidade, tempo de internação e custos com a saúde.
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Pneumonia por COVID-19: Procalcitonina para avaliação de risco e exclusão da coinfecção bacteriana
Como descrito acima, a PCT é amplamente usada para avaliar o risco de infecção bacteriana, progressão para sepse grave e choque séptico em conjunto com outros achados laboratoriais e avaliação.
Além disso, a alteração da PCT ao longo do tempo é usada para determinar o risco de mortalidade. Em pacientes com suspeita ou confirmação de infecções do trato respiratório inferior (ITRI), incluindo pneumonia (PAC), bronquite aguda e exacerbações agudas da DPOC, a PCT é auxiliar na tomada de decisão em antibioticoterapia para pacientes internados ou no pronto-socorro (ED).
A PCT demonstrou ser também uma ferramenta valiosa na atual pandemia de COVID-19 para identificar precocemente pacientes com baixo risco de coinfecção bacteriana e resultado adverso.11-16
Uma nova análise de 1.099 conjuntos de dados de pacientes COVID-19 de vários centros médicos na China2 demonstrou que, a PCT apresenta-se menor do que <0,5μg/L em mais de 96% dos pacientes que apresentaram: baixa gravidade da doença, ausência de efeitos adversos e desfecho combinado desfavoráveis como admissão na UTI, ventilação invasiva, morte. A maior parte dos pacientes com COVID-19 apresentaram valores de PCT abaixo de 0,25μg/L ou mesmo abaixo de 0,1μg/L.2-3 Isso confirma achados de epidemias virais anteriores (influenza H1N1, SARS, MERS) em que a PCT é geralmente baixa (<0,1 – <0,5μg / L) em pacientes hospitalizados com infecção viral pura.18 19 20 21 22 23
No caso de coinfecção bacteriana e maior gravidade da doença, foi encontrada quando a PCT se apresentou maior do que 0,5μg/L.11-16
Assim, de acordo com uma recente metanálise dos dados publicados dos pacientes COVID-19, A PCT> 0,5μg/L corresponde a um risco quase 5 vezes maior de infecção grave (OR, 4,76; IC 95%, 2,74-8,29) em comparação com pacientes com PCT <0,5 μg/L. Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) e choque séptico foram as complicações mais frequentes do COVID-19; infecções secundárias durante a internação foram um fator de risco adicional.11-16 As mortes ocorreram em quase todos os pacientes associados à sepse/choque séptico e insuficiência respiratória/SDRA.12 13 16 18
Referências:
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2. Murphy S, Xu J, Kochanek K, Curtin SA, E.Deaths: Final Data for 2015. National Vital Statistics Reports 2107;66:75.
3. Torio C, Andres R. National Inpatient Hospital Costs: The Most Expensive Conditions by Payer, 2011. HCUP etatistical Brief #160. Rockville, MD: Agency for Healthcare Research and Quality; 2013.
4. Tiru B, DiNino EK, Orenstein A, et al. The Economic and Humanistic Burden of Severe Sepsis. Pharmacoeconomics 2015;33:925-37.
5. Sepsis Fact Sheet. 2018. at https://www.sepsis.org/downloads/2016_sepsis_facts_ media.pdf.)
6. Bacterial Sepsis Differential Diagnoses. Medscape, 2017. at https://emedicine.medscape.com/article/234587-differential.
7. Harbarth S, Holeckova K, Froidevaux C, et al. Diagnostic value of procalcitonin, interleukin-6, and interleukin-8 in critically ill patients admitted with suspected sepsis. Am J Respir Crit Care Med 2001;164:396-402.
8. Muller B, Becker KL, Schachinger H, et al. Calcitonin precursors are reliable markers of sepsis in a medical intensive care unit. Crit Care Med 2000;28:977-83.
9. Kumar A, Roberts D, Wood KE, et al. Duration of hypotension before initiation of effective antimicrobial therapy is the critical determinant of survival in human septic shock. Crit Care Med 2006;34:1589-96.
10. Mallet E, Lanse X, Devaux AM, Ensel P, Basuyau JP, Brunelle P. Hypercalcitoninaemia in Fulminant Meningococcaemia in Children. The Lancet 1983;321.
11. Huang C et al: Lancet 2020; 395: 497–506
12. Guan W. et al., NEJM 28 Feb 2020, https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2002032
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[[Artigo disponível na íntegra na Revista Newslab Ed 159]]