No final de dezembro de 2020, a médica especialista em medicina interna, Dra. Sarah Stone, chegou para um dia de plantão diurno no Sharp Chula Vista, nos Estados Unidos; a unidade de terapia intensiva (UTI) e as enfermarias ainda lotadas de pacientes com covid-19, mas, nos últimos meses, havia cada vez mais pacientes recuperados apresentando uma miríade de sinais e sintomas: êmbolos pulmonares, miocardiopatia, um caso chocante de aspergilose e aqueles raros casos de “covid-19 prolongada” em pacientes que simplesmente não melhoram.
Naquela manhã a paciente era uma mulher nos seus 30 anos de idade. Ela estava se sentindo bem, mas duas semanas depois de se recuperar da covid-19, apareceram hematomas inexplicáveis no membro superior, um exantema petequial nos membros inferiores e sangramento gengival. Ela deu entrada no pronto-socorro e sua contagem de plaquetas de 5.000/mm3 revelou claramente o quadro de púrpura trombocitopênica imunitária (PTI).
Na experiência da Dra. Sarah, sinais e sintomas novos e inexplicados logo após a covid-19 não podem ser definidos como coincidência sem alguma consideração adicional, mas uma rápida pesquisa preliminar na literatura durante suas buscas não deu em quase nada. A Dra. Sarah encontrou um relato de três casos de púrpura trombocitopênica imunitária após a covid-19, mas outros recursos on-line não mencionavam a doença. O Dr. Kenneth Johnson, médico hematologista e oncologista consultado sobre o novo caso, disse à Dra. Sarah que tinha visto outro caso de púrpura trombocitopênica imunitária após a covid-19 no início do mês. A Dra. Sarah ligou para um hospital da sua rede; lá tinham visto outro caso apenas algumas semanas antes.
“Fiquei surpresa ao só encontrar três casos na literatura quando vimos três nos nossos hospitais em questão de semanas”, disse Dra. Sarah para o Medscape. Tinha algo fora de lugar.
O elo perdido
A púrpura trombocitopênica imunitária é causada por uma reação imunitária contra as plaquetas do próprio paciente. O número de plaquetas cai, causando hematomas, sangramento gengival e sangramento interno. Em geral, os casos agudos podem ser resolvidos em três meses, mas para alguns pacientes a doença pode se prolongar ou mesmo cronificar.
“Sabemos que infecções como a gripe podem causar púrpura trombocitopênica imunitária, diante disso, a PTI associada à covid-19 pode não ser nenhuma surpresa”, disse para o Medscape o Dr. Gerard Jansen, médico hematologista especialista em medicina interna na Holanda.
O Dr. Gerard e seus colaboradores registraram três casos de púrpura trombocitopênica imunitária após a covid-19 em maio de 2020 – o relato de caso que a Dra. Sarah tinha encontrado em suas buscas. Dois pacientes evoluíram com púrpura trombocitopênica imunitária várias semanas após a covid-19 e responderam ao tratamento com corticoides e imunoglobulina G intravenosa (IVIG, do inglês Intravenous Immune Globulin). O terceiro paciente, entretanto, morreu de hemorragia intracerebral enquanto ainda estava lutando contra a covid-19. Ele foi diagnosticado retrospectivamente com púrpura trombocitopênica imunitária associada à covid-19.
Um mergulho mais profundo na literatura revelou outros relatos de casos provenientes da Índia, da França, do Reino Unido, da Turquia e um da China, já em janeiro de 2020. Uma revisão de setembro de 2020 da púrpura trombocitopênica imunitária secundária à covid-19 incluiu 23 artigos, totalizando 45 pacientes. Os autores da revisão observaram que mais de 70% dos casos ocorreram em pacientes com mais de 50 anos e 75% tinham covid-19 moderada a grave. No entanto, o tamanho da amostra (N = 45) é muito pequeno para descrever claramente o que está acontecendo na população geral.
A ligação da púrpura trombocitopênica imunitária com a covid-19 ganhou os holofotes da mídia no início de janeiro de 2021 após o Dr. Gregory Michael, ginecologista e obstetra nos Estados Unidos, ter tido PTI dias depois de ter tomado a vacina anticovídica da Pfizer. No início de janeiro, após duas semanas na UTI, Dr. Gregory morreu de acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico causado pela plaquetopenia.
A Pfizer fez uma declaração dizendo que está “investigando ativamente” o caso, “mas que não acredita neste momento que exista nenhuma relação direta com a vacina”. Outros especialistas disseram que o momento, particularmente em um homem relativamente jovem e saudável, significa que a relação com a vacina é possível ou até mesmo provável, mas os resultados finais só serão conhecidos quando os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) concluírem sua investigação.
Mas “é bastante incomum morrer de púrpura trombocitopênica imunitária”, disse para o Medscape o Dr. Kenneth.Em seus mais de 20 anos de exercício da medicina o especialista nunca teve um paciente que tenha morrido dessa doença.
Por sua vez, o Dr. Gerard disse que, neste momento, não sabemos se existe alguma relação entre a vacina e a púrpura trombocitopênica imunitária. Tanto a infecção como os medicamentos são causas comprovadas de púrpura trombocitopênica imunitária, portanto, com esse mecanismo geral ou fisiopatologia em mente, faz sentido que a covid-19 e a vacina possam causar púrpura trombocitopênica imunitária, mas seria muito difícil provar isso com apenas um caso, disse o especialista. E, considerando as milhões de pessoas que receberam a vacina até agora sem incidentes, bem como os riscos e perigos conhecidos da covid-19, “continuamos aconselhando a vacinar”, disse o médico.
O número de casos é subestimado
Desde o primeiro relato de caso, em maio, Dr. Gerard viu outros cinco casos ou mais, mas o nexo causal entre o coronavírus e os sinais e sintomas hematológicos ainda não está definido. “Não sabemos muito sobre a contagem plaquetária na covid-19”, disse o hematologista. Pode ser que a covid-19 iniba de alguma forma a produção plaquetária ou destrua as plaquetas existentes. Seja qual for a relação exata com o vírus, Dr. Gerard imagina que o número real de casos de púrpura trombocitopênica imunitária relacionados com a covid-19 seja maior do que as estimativas atuais sugerem.
Uma razão pela qual isso não está sendo mais diagnosticado, disse Dr. Gerard, pode ser porque a causa da púrpura trombocitopênica imunitária em pacientes com covid-19 é difícil de diagnosticar. Em seu relato de caso feito em maio, Dr. Gerard e colaboradores escreveram: “Existem muitos outros fatores que podem causar trombocitopenia no que se refere à covid-19, por exemplo, a ativação da coagulação pela infecção por SARS-CoV-2, causando coagulação intravascular disseminada (CID) com subsequente trombocitopenia. Além disso, os tratamentos da covid‐19, como heparina, azitromicina e hidroxicloroquina, podem causar trombocitopenia”.
O rastreamento e o conhecimento da púrpura trombocitopênica imunitária relacionada com a covid-19 exigem primeiro o extenso processo de eliminação necessário para o seu diagnóstico.
Além disso, os medicamentos usados para tratar a covid-19 poderiam estar mascarando a púrpura trombocitopênica imunitária relacionada com a infecção. “A dexametasona é o pilar do tratamento da covid-19, e é como tratamos a púrpura trombocitopênica imunitária”, disse Dr. Kenneth, o que significa que os médicos podem estar tratando o quadro hematológico sem sequer saber que existe. Essa é uma hipótese da razão pela qual a Dra. Sarah e o Dr. Kenneth não viram nenhum caso até o nono mês da pandemia.
O tratamento da púrpura trombocitopênica imunitária associada à covid também tem seus desafios, particularmente nos pacientes que abrem o quadro durante uma infecção aguda por SARS-CoV-2 e correm risco de sangramento interno e trombose. Foi o que aconteceu com o terceiro paciente do relato de caso do Dr. Gerard. O paciente fez uma embolia pulmonar e teve queda da contagem plaquetária, recebeu transfusão de plaquetas e, a seguir, anticoagulante para a trombose. Porém, um olhar retrospectivo para o caso revelou que a transfusão “não aumentou o número de plaquetas – o que sugere púrpura trombocitopênica imunitária”, disse Dr. Gerard. O sangramento intracraniano foi a causa da morte.
Por isso “é importante estar ciente deste fenômeno”, disse Dr. Gerard, em relação à púrpura trombocitopênica imunitária relacionada com a covid-19. Se a transfusão não for bem-sucedida, considere que o paciente pode ter PTI e ajuste a conduta. O Dr. Kenneth não precisou tratar nenhum paciente com as duas doenças concomitantes, mas disse que a conduta ideal seria aumentar as plaquetas com corticoides e IVIG, e a seguir, anticoagular quando a contagem de plaquetas estiver mais alta – mas na vida real raramente o cenário é ideal. Com frequência as duas estratégias precisarão ser simultâneas, dado que o paciente enfrenta duas doenças potencialmente fatais, disse o especialista. “É uma situação muito delicada”, disse o médico.
A boa notícia é que os tratamentos convencionais da púrpura trombocitopênica imunitária parecem funcionar para a PTI associada à covid-19. A paciente de 30 anos atendida pela Dra. Sarah e pelo Dr. Kenneth respondeu tão bem aos corticoides intravenosos que a IVIG foi desnecessária. Agora ela está fazendo um desmame lento da prednisona e mantém a contagem de plaquetas em 114.000/mm3 nas suas consultas semanais de acompanhamento com o Dr. Kenneth.
Enquanto isso, os outros dois pacientes do Dr. Gerard, agora há quase um ano sem tratamento, não precisam mais de nenhum medicamento. Um dos pacientes está inteiramente recuperado e, embora o outro ainda tenha uma contagem plaquetária abaixo da normal, não apresenta sinais e sintomas de sangramento e sua contagem plaquetária permanece estável. Ainda assim, Dr. Gerard está ansioso para obter mais dados sobre a contagem plaquetária de cada paciente com covid-19 e combinar os achados dos pacientes com púrpura trombocitopênica imunitária associada à covid-19.
A Dra. Sarah disse que acrescentou uma complicação da covid-19 ao seu repertório. Um efeito tardio a menos para pegá-la desprevenida, e ela quer que todos saibam disso.
“É um pouco assustador. Nós não sabemos o que vem após a covid-19”, disse a médica. “Essa doença ocorre em tantos níveis. Algumas pessoas ficam às voltas com isso por tanto tempo e algumas pessoas simplesmente melhoram e vão em frente – era o que nós pensávamos… até agora.”
Com informações de Donavyn Coffey – Médicos lutam para compreender ligação entre covid-19 e púrpura trombocitopênica imunitária – Medscape