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Entrevista: As doenças transmitidas por mosquitos preocupam o Brasil

Por Claudia Lima

Diante do aumento do número de casos da febre amarela silvestre no Brasil, e o temor de um possível retorno de surto de febre amarela urbana, nós, da Newslab, convidamos a Dra. Márcia Polite (biomédica, consultora especialista em doenças infecciosas e doenças transmissíveis por transfusão) para dialogar sobre este cenário, seus impactos e a estrutura de saúde no Brasil, colocando em pauta o suporte do diagnóstico laboratorial para a identificação de casos clínicos.

Como avalia o cenário atual e em que momento deu-se conta de que se tratava realmente de um surto de febre amarela?

O atual surto silvestre da febre amarela começou no final de dezembro e foi reconhecido oficialmente em janeiro, quando o governo de Minas Gerais decretou situação de emergência em saúde pública nas áreas do Estado atingidas pelo surto. Os macacos, hospedeiros naturais (principalmente os bugios e os sauás) começaram a aparecer mortos no leste de Minas.

Macacos são muito vulneráveis ao vírus e conhecidamente são considerados “sentinelas da doença”. A morte dos macacos é um aviso de que o vírus está presente numa determinada região.

Para análise desse surto, precisamos também considerar o descaso do homem para com a natureza, vide as sucessivas destruições da mata, como a que ocorreu em 2015, com o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, matando rios e animais. A floresta e o equilíbrio da Mata Atlântica foram novamente ameaçados. A saúde da mata é a saúde da população.

A febre amarela não é uma doença originária da floresta brasileira. No século XVII, durante o período da escravidão, os navios negreiros trouxeram da África o vírus e o mosquito Aedes aegypti. A febre era inicialmente urbana. Os mosquitos silvestres, o Haemogogus e o Sabethes, se infectaram com o vírus e estes o transmitiram para os macacos, que se tornaram hospedeiros. O principal reservatório é o mosquito. O homem é um hospedeiro acidental. Segundo alguns primatologistas, nas florestas, a febre amarela silvestre ocorre em ciclos de cerca de sete anos, mata macacos e depois desaparece para reemergir quando a população se recupera. Não é o homem que morre da doença do macaco, é o macaco que morre da doença do homem. Para os macacos não há a proteção da vacina.

A OMS (Organização Mundial da Saúde), no relatório de 27/01/2017, afirma ser esperada a detecção de casos de febre amarela em outros Estados além de MG, que hoje concentra o maior número de registros. Quais os riscos de que o vírus passe para uma forma urbana?

 Há casos suspeitos em São Paulo, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Santa Catarina, Mato Grosso, Espírito Santo e Tocantins.

Casos brandos ou assintomáticos de febre amarela, em união ao desmatamento e à expansão das áreas urbanas, podem facilitar a disseminação, transmissão e evolução dos vírus para a forma urbana (quando uma pessoa infectada pela silvestre é picada por fêmeas do hematófago Aedes aegypti).

A forma urbana preocupa devido à ampla distribuição do Aedes em nosso país. Erradicar o mosquito transmissor da febre amarela é quase impossível, mas combater o mosquito Aedes aegypti nas cidades é uma medida que continua sendo de extrema importância para evitar surtos da doença nas áreas urbanas. Por isso, ninguém pode descuidar das normas básicas de prevenção.

Segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica, no Brasil, desde 1942 só há registro de surto de febre amarela silvestre. A febre amarela urbana era considerada erradicada.

Realizando uma breve pesquisa no mercado diagnóstico para elaborar esta matéria, quase não localizamos opções e disponibilidade de testes rápidos para febre amarela e malária, que poderiam ser uma opção diagnóstica viável para localidades distantes.

Quais os recursos laboratoriais disponíveis para suprir a necessidade de uma identificação imediata, em localidades afastadas dos centros urbanos e com grande volume de casos suspeitos?

 Embora o diagnóstico laboratorial possa ser realizado em laboratórios de referência indicados pelas secretarias estaduais de saúde ou em laboratórios particulares (MAC-Elisa, PCR ou isolamento do vírus em cultura), torna-se de difícil acesso para as populações mais carentes, pelo custo e distância dos centros urbanos.

Alguns dos infectados pela febre amarela são assintomáticos ou se recuperam logo. Como não existem medicamentos específicos para destruir o vírus, apenas os sintomas são tratados e a pessoa melhora em função da resposta de seu sistema imunológico e do tratamento de suporte (hidratação, controle da temperatura etc.), deixando a dúvida se foram considerados no levantamento estatístico de notificações, uma vez que somente os casos mais graves é que chegam aos locais de atendimento.

Geralmente o diagnóstico é realizado com a união de informações apresentadas pelo paciente: sintomas, informação de vacina, ocorrência de casos da doença a sua volta, se visitou ou reside em áreas endêmicas, se observou a morte de macacos nos lugares em que vive ou visitou. No entanto, só é possível confirmar o diagnóstico depois de realizar exames laboratoriais complementares.

Os casos que apresentam sintomas surgem de forma rápida, geralmente a pessoa começa a sentir-se mal de repente.

O período de incubação e viremia é relativamente curto, varia em média entre 3 e 6 dias, e o vírus fica no corpo humano no máximo por 7 dias, o que também acaba dificultando a confirmação do diagnóstico.

Os métodos sorológicos imunoenzimáticos que identificam IgM específica, presente em infecção recente ou atual, podem ajudar no diagnóstico rápido em uma amostra, se esta for obtida a partir do 5º dia de doença.

Hoje há laboratórios em diversos Estados que realizam o diagnóstico sorológico e podem ajudar na vigilância epidemiológica. As técnicas diagnósticas têm evoluído com a introdução da imuno-histoquímica e RT-PCR, que complementam as técnicas de isolamento viral e sorologia.

Qual é o procedimento diante da confirmação diagnóstica de um caso de febre amarela?

 Se o resultado dos testes for positivo, a única forma de impedir que o vírus se espalhe é vacinar a população que vive ou esteve nas áreas de risco.

A febre amarela é uma doença de notificação compulsória no mundo. O objetivo é manter as autoridades sanitárias sempre informadas a fim de que tomem as medidas profiláticas necessárias rapidamente.

A principal medida de controle é a vacinação de moradores (em fronteiras das matas) e pessoas que se deslocam para áreas endêmicas. A vacina da febre amarela no Brasil faz parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que recomenda duas doses (crianças devem receber a vacina aos 9 meses e aos 4 anos de idade). A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda apenas uma dose.

Para quem não tomou as doses na infância, a orientação é de uma dose da vacina e outra de reforço, dez anos depois da primeira.

Quais os impactos para os bancos de sangue?

Há registros em alguns estudos bibliográficos anteriores de que, em geral, 40% a 65% das pessoas têm infecção assintomática, e 20% a 30% evoluem para formas leves e moderadas. Como não existem medicamentos específicos para destruir o vírus, apenas os sintomas são tratados e a pessoa melhora, respondendo à doença espontaneamente com ajuda do tratamento padrão de suporte. Do total avaliado nesses estudos, 10% a 20% podem evoluir para formas graves e 5% para formas malignas, podendo até levar a óbito.

Nos casos mais graves, o paciente pode necessitar de diálise e transfusões de sangue. A imunização da população contra febre amarela tem reduzido drasticamente o número de doações, principalmente nas áreas endêmicas.

A publicação de uma das últimas normas técnicas da Anvisa, de 08/02/2017, reafirma e determina algumas orientações de critérios a ser considerados na triagem clínica de doadores, entre outras medidas: inaptidão de 4 semanas de doadores vacinados, a partir da data de vacinação; inaptidão por 6 meses de doadores que contraíram a doença após recuperação clínica completa, isso considerando que não existem evidências de transmissão do vírus da febre amarela por transfusão de hemocomponentes proveniente de doadores que contraíram a doença pela picada do mosquito, embora existam estudos relatando a transmissão do vírus da febre amarela por transfusão após a vacinação (CDC, 2010).

Como avalia as perspectivas futuras?

Conforme exposto pelo virologista Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas, especialista em febre amarela reconhecido internacionalmente, o vírus tem se espalhado depressa e ainda levará tempo para descobrir o motivo. Uma possibilidade é de fato que pessoas infectadas tenham sido picadas por mosquitos silvestres e levado o vírus para outras regiões.

Atualmente o trabalho conjunto e atento dos responsáveis pela vigilância dos centros de saúde pública dos municípios locais e a colaboração da população em união com a responsabilidade dos Estados, em relação à limpeza e a medidas de prevenção na proliferação dos mosquitos vetores, podem contribuir para que o ciclo urbano seja contido.

Muitos cientistas e primatologistas veem na mortalidade dos macacos um desequilíbrio ambiental maior. Há registros em certos municípios da morte conjunta de cerca de 600 animais ou mais que foram avistados, exceto aqueles que se embrenham pelas matas e não são contabilizados. No caso da febre amarela silvestre, pesquisadores não sabem quando e como a doença vai terminar. Os macacos são conhecidos como engenheiros das matas, importantes para a distribuição das árvores, espalhando sementes e, com isso, a preservação da vida, dos animais, do clima e de todo o ciclo de vida do qual a mata depende.

A doença permanecerá existindo. Novos casos de febre amarela surgirão e serão diagnosticados anualmente. O homem continuará a invadir as matas. A

vigilância nos municípios e Estados tem de permanecer alerta, estudando o entorno e vacinando as populações.

O que tem dado certo?

Vale observar a história recente (Folha de S.Paulo, 14/02/2017) sobre a cidade de Franciscópolis, no interior de Minas Gerais, onde a população, na maioria rural, vive em um dos locais mais afetados pelo surto endêmico, mas não apresentou até hoje nenhum caso descrito da doença. Uma ilha absoluta no meio de uma região altamente afetada. Deve-se esse sucesso às ações adotadas pela coordenação de vigilância do local, que percebeu o perigo — em adesão às informações dos habitantes — e deu o alerta para vacinar toda a população sem demora.

E sobre a malária, como podemos avaliar a situação atual?

O principal vetor de transmissão da malária na América do Sul é o mosquito da espécie Anopheles darlingi. Ele foi o responsável por praticamente 276 mil casos da doença registrados no Brasil em 2012, a maioria (99%) restrita à Amazônia.

A. darlingi é um inseto muito bem adaptado à vida na floresta amazônica, onde o regime de chuvas é abundante o ano todo e as temperaturas médias são elevadas.

Nesse início de ano de 2017, além do surto de febre amarela, também foram reportados pelas Secretarias de Saúde dos Estados surtos de malária registrados em Minas Gerais e no Tocantins.

Segundo a Secretaria de Saúde do Estado do Tocantins, foi identificado que todos os pacientes estiveram no mesmo período em uma área do município de Araguatins, próximo ao Rio Araguaia, provável local de infecção.

Em Minas Gerais, a Secretaria do Estado (SES/MG) informou a área de garimpo de Diamantina como provável local de disseminação da infecção, emitindo sinal de alerta para os municípios vizinhos e para as autoridades sanitárias estaduais, já que há trabalhadores de várias regiões do país naquele local.

O que tem sido feito para contenção desses casos?

Tanto em MG como no TO as SES deslocaram equipes para identificar esses casos e, ao mesmo tempo, capturar mosquitos para identificação da espécie na região, borrifar  inseticidas e treinar os profissionais locais da saúde para realização de diagnósticos laboratoriais e tratamento imediato para os pacientes, medida importante para quebrar o ciclo da doença de contaminação de outros mosquitos, uma vez que não há vacina preventiva.

Nessas áreas, os exames laboratoriais para confirmação de casos estão sendo realizados por meio de testes rápidos e de testes de gota espessa.

Ações rápidas são muito importantes para a quebra do ciclo de transmissão.


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Márcia B C Polite

Biomédica Assessora da RemLab Central Sorológica e  Byoline Assessoria.

Especialista no estudo de doenças infecciosas e doenças transmissíveis pelo sangue.

Consultora no desenvolvimento e padronização de rotinas,  procedimentos laboratoriais e normatização de novas tecnologias.

mbcpolite@hotmail.com

 

 


 

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