O diagnóstico de duas ou mais doenças crônicas para uma mesma pessoa cresceu nos últimos 20 anos. O aumento dessa condição, conhecida como multimorbidade, acompanha o envelhecimento da população na cidade de São Paulo.
Em 2015, 42,2% da população paulistana com mais de 19 anos convivia com multimorbidade, de acordo com o levantamento do fisioterapeuta Ricardo Goes de Aguiar, doutor pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Em sua tese de doutorado ele apresenta estratégias para capacitar profissionais de saúde diante desses atendimentos.
São consideradas crônicas as condições de saúde de longa duração que geralmente progridem ao longo do tempo, como hipertensão, asma, artrite, hérnia de disco, depressão e outras. Por serem duradouras, requerem tratamento para controlar os sintomas e minimizar complicações.
Normalmente, as doenças crônicas são estudadas e tratadas isoladamente por especialistas. Porém, isso aumenta as chances de que a interação entre diferentes medicamentos provoque efeitos adversos.
“Apesar de esforços recentes na formação dos profissionais de saúde e em práticas mais integrais e humanizadas, os clínicos ainda trabalham com [foco em] condições específicas, historicamente. Com o envelhecimento da população, a tendência é que as pessoas acumulem doenças, e elas acabam sendo atendidas de forma fragmentada”, diz Ricardo de Aguiar ao Jornal da USP.
Nas unidades que adotam a Estratégia Saúde da Família, criada em 1994 e que se tornou prioritária na atenção primária do SUS em 2003, os profissionais podem indicar ao paciente uma consulta com os farmacêuticos das unidades básicas.
Em conversa com o Jornal da USP, a médica de família e comunidade Caroline do Nascimento, que atua em uma unidade básica no distrito do Jabaquara, zona Sul de São Paulo, conta que as equipes das unidades que adotam essa estratégia costumam se reunir para discutir os casos e compartilhar impressões de alguns pacientes específicos.
“Os farmacêuticos discutem o caso se identificarem alguma interação ou dose que pode ser prejudicial quando o paciente retira alguma medicação. Para pacientes com multimorbidade, isso acaba sendo rotineiro.”
No Inquérito de Saúde na Cidade de São Paulo (ISA Capital-SP) de 2015, cujos dados foram utilizados no estudo, foram feitas 3.184 entrevistas domiciliares aleatórias com pessoas com 20 anos ou mais. “O ISA Capital entrevista maiores de 12 anos, mas como os estudos demonstram que a prevalência de multimorbidade em crianças e adolescentes é baixa, optamos por trabalhar com a população adulta e idosa no nosso estudo”, justifica o pesquisador.
Foram apresentadas para autodeclaração dos entrevistados condições como diabete, câncer, AVC, colesterol elevado. Entre as doenças cardiovasculares, constavam hipertensão, dor no peito, varizes e arritmia cardíaca. Das doenças respiratórias, eram listadas, entre outras, asma, enfisema, bronquite e sinusite. Na área ortopédica, as alternativas eram artrite; artrose; osteoporose, tendinite, lesão por esforço repetitivo e problemas de coluna. No âmbito da saúde mental, apareciam ansiedade, depressão, síndrome do pânico, TOC e esquizofrenia.
O pesquisador defende uma abordagem que extrapole os fatores biológicos das doenças. “A ideia dos estudiosos da multimorbidade é ver o indivíduo como um todo, tentando fazer um atendimento que considere desde a anatomia e a fisiologia até os determinantes sociais no indivíduo.”
A multimorbidade atingiu 42,2% da amostra estudada, de acordo com o que foi autodeclarado dentre 22 condições apresentadas aos entrevistados. Entre os idosos, esse índice é ainda maior.
Em São Paulo, sete entre cada dez pessoas com 60 anos ou mais têm multimorbidade.
Além de ocorrer mais entre pessoas mais velhas, a condição também é mais comum entre o sexo feminino, explica Ricardo de Aguiar. “O homem tem mais resistência em procurar o serviço de saúde. Então pode ser uma explicação para o maior porcentual de multimorbidade encontrada entre as mulheres.”
Outros grupos que apresentaram maior prevalência de multimorbidade na cidade foram os com maior renda familiar, com pelo menos o ensino superior incompleto, com obesidade (avaliada pelo Índice de Massa Corporal), que faziam o uso de cinco ou mais medicamentos, com transtornos mentais comuns (como depressão e ansiedade), com maiores despesas com saúde e com convênio médico. “Os indivíduos que têm plano de saúde provavelmente tiveram mais acesso a consultas médicas e, por isso, receberam diagnóstico de mais doenças”, avalia o pesquisador.
Identificando padrões frequentes
Além da prevalência, o estudo utilizou um método estatístico — a análise de classe latente — para identificar padrões de multimorbidades semelhantes mais frequentes. Dos entrevistados no ISA Capital-SP com mais de 19 anos, 15,9% apresentavam combinações de doenças cardiovasculares, como a hipertensão; 12,8% tinham mais doenças respiratórias, e outros 12,8% tinham condições reumatológicas, ortopédicas e emocionais combinadas.
Para o autor do estudo, isso é importante porque são milhares de combinações possíveis entre as 22 condições de saúde investigadas. “O conhecimento de grupos de indivíduos com necessidades semelhantes pode favorecer a elaboração de diretrizes clínicas, considerando que ficaria inviável formular especificamente para cada uma das milhares de combinações possíveis de condições de saúde. Portanto, uma linha de pesquisa é tentar identificar esses padrões de multimorbidade.”
Na unidade de Caroline do Nascimento, a estratégia de cuidado em grupo é uma solução vantajosa, já que o tempo das consultas individuais precisa ser mais limitado para viabilizar o atendimento para o grande número de pacientes do bairro. “Nós temos o grupo de dor crônica e os grupos de práticas corporais. É uma estratégia também de convivência para o paciente com outras pessoas que têm condições semelhantes. Muitos deles ficam muito tempo em casa, sem ter uma atividade na rotina, principalmente idosos e aposentados, então acabam ficando mais isolados. Então a ida à unidade para fazer parte dos grupos é uma parte do cuidado muito importante.”
Como centro de formação e de oferta de serviços de saúde de excelência, o município de São Paulo pode estimular uma educação permanente com a elaboração de diretrizes clínicas para esses casos. Esses dados permitem pensar em diretrizes para mais de 40% da população da cidade, em vez das inúmeras possibilidades caso as doenças fossem trabalhadas em pares ou em trios.
De acordo com o pesquisador, é preciso ver o indivíduo como um todo e considerar as vivências e as expectativas com o tratamento. As unidades de atenção básica interdisciplinares estão previstas no Sistema Único de Saúde (SUS).
“A legislação e a normatização permitiriam uma maior resolutividade dos problemas já existentes. A questão é se os profissionais estão chegando aos serviços preparados para atuar dessa forma interdisciplinar”
Ricardo de Aguiar
Atualmente, as Equipes Multiprofissionais da Atenção Básica (eMulti) envolvem, além de médicos, assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, arte-educadores, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Esses grupos levam em consideração as limitações da população mais velha e com multimorbidade, e integram diferentes terapias.
Caroline do Nascimento conta que esses profissionais contribuem muito para o cuidado desses pacientes. “Nós não pensamos nunca nesse cuidado centrado no médico. Sempre pensamos no trabalho em equipe.”
Esses diferentes profissionais dão suporte às unidades de atenção básica que adotam a Estratégia Saúde da Família. “A ideia é trabalhar com médicos generalistas e com equipes multiprofissionais, de forma interdisciplinar e com reuniões que discutam os casos”, explica Ricardo.
Essas equipes foram criadas pelo governo federal em 2008 como Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mas o financiamento foi interrompido em 2020, durante o governo Bolsonaro. Em maio de 2023, o serviço voltou com mais especialidades médicas e recebeu o novo nome de eMulti.
Segundo a médica, a grande vantagem na estratégia é estar próximo das pessoas. “Nós também temos esse vínculo com a população por meio das agentes comunitárias de saúde, que é uma função fundamental quando precisamos fazer busca ativa de pacientes que não estão vindo ou quando precisamos programar visitas domiciliares.”
Os dados da tese Multimorbidade no município de São Paulo (SP): prevalência, padrões e fatores associados também foram discutidos em artigo na revista Ciência & Saúde Coletiva.
Mais informações: e-mail ricardo.aguiar@unifal-mg.edu.br, com Ricardo Goes de Aguiar
*Estagiário sob orientação de Luiza Caires
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
Matéria – Jornal da USP, Texto: Ivan Conterno*
Arte: Carolina Borin**