Pesquisa coordenada pela USP em Ribeirão Preto mostra que durante inflamações graves, como na covid-19, um sistema natural do organismo com funções anti-inflamatórias encontra-se desativado. Trata-se do sistema endocanabinoide (eCB), que regula vários processos fisiológicos, incluindo a resposta imunológica, sendo composto de moléculas que se ligam aos mesmos receptores dos canabinoides, substâncias encontradas em plantas como a Cannabis sativa.
Segundo o professor Carlos Sorgi, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, um dos responsáveis pelo estudo, os resultados mostram ainda que “os medicamentos glicocorticoides usados em casos graves de inflamação agem por aumento do metabolismo de moléculas de um sistema denominado eixo endocanabinoide (eCB), que tem potencial anti-inflamatório”. De acordo com o pesquisador, esta informação é inédita e sugere que pesquisas futuras podem abrir espaço para o teste de canabinoides como “tratamentos acessórios ou combinados em casos de inflamação grave”.
O estudo foi realizado pela equipe multidisciplinar do Consórcio ImmunoCOVID (laboratórios de pesquisa da USP que estudam os biomarcadores e imunologia da covid-19), que investigou esse sistema endocanabinoide e os fatores de agregação plaquetária (PAF), também envolvido nos processos inflamatórios e de coagulação sanguínea. Foram avaliados 200 pacientes com covid-19 e 35 participantes saudáveis. Os achados mais interessantes mostraram que os glicocorticoides, um dos principais fármacos usados na fase aguda da covid, reduzem a produção de PAFs e aumentam a de endocanabinoides. Além disso, ao mesmo tempo que mostrou a ação dos glicocorticoides nessas vias lipídicas durante o tratamento da doença em sua forma grave, o estudo também demonstrou que “a gravidade da covid-19 afetou a síntese de eCB e de PAF”, afirma Sorgi.
Resolução natural da inflamação
Endocanabinoides são biomoléculas que, como os canabinoides encontrados em plantas, se ligam e ativam os receptores canabinoides do nosso organismo, exercendo, entre outras, funções anti-inflamatórias que amenizam infecções e processos inflamatórios graves. Dentre as classes de biomoléculas com potencial inflamatório, estão também os fatores de agregação plaquetária (PAF), que são “lipídios que promovem inflamação e têm funções relacionadas à coagulação e formação de trombos”, esclarece o professor.
Na covid-19, há inflamação exacerbada causada por mediadores produzidos principalmente pelos glóbulos brancos, a chamada tempestade de citocinas. Em resposta, os endocanabinoides fazem o efeito contrário, reduzindo a inflamação no organismo. O professor explica que, “de forma geral e bem resumida, durante um processo inflamatório, temos sinais característicos como edema, que é um inchaço no local afetado, vermelhidão e até dor. Em casos de infecção, pode haver também acúmulo de células da imunidade na região da lesão com formação de pus, na tentativa de eliminar microrganismos potencialmente causadores de doenças. No final, acontece a resolução natural de todo este processo no corpo humano, que produz seus próprios mediadores anti-inflamatórios”.
No entanto, outra forma de conseguir este controle da inflamação é através do uso de medicamentos anti-inflamatórios do tipo esteroidais e não-esteroidais. “Os não-esteroidais agem, geralmente, na via de formação de prostaglandinas [compostos lipídicos com efeitos semelhantes aos dos hormônios que resultam na inflamação e na coagulação do sangue, por exemplo]”, explica o professor. Já os anti-inflamatórios esteroidais, como os glicocorticoides, “se ligam aos receptores nucleares e inibem a formação de várias moléculas como proteínas relacionadas à inflamação”, completa.
Os pacientes internados acompanhados pelos pesquisadores receberam o medicamento dexametasona por via oral ou intravenosa, por até dez dias ou até a alta hospitalar. Esses pacientes apresentavam quadro grave e muitas vezes o tratamento sozinho não foi suficiente para evitar o óbito. “O que acontece na covid-19 grave é que os pacientes não chegam nesse estágio de resolução ou de anti-inflamação natural. Então, há um processo inflamatório contínuo durante muito tempo (hiperinflamação), sem a regulação adequada, o que pode levar a danos nos órgãos, como nos pulmões. A doença faz com que o organismo continue “inflamando” o tempo todo sem poder entrar nessa fase de resolução.”
Anti-inflamatório aumenta produção de endocanabinoides
O estudo analisou quadros leves e moderados de covid-19 que receberam tratamento domiciliar e casos graves ou críticos hospitalizados em unidades de terapia intensiva (UTIs) ou enfermarias. Os dados desses pacientes foram comparados com os de pessoas sem a doença. “Comparamos todos os dados clínicos, laboratoriais e colhemos sangue dessas pessoas para dosar a quantidade de endocanabinoides e PAF circulantes. Após essas análises, utilizamos métodos estatísticos para conseguir chegar a um melhor resultado e entender como estava a produção dessas biomoléculas lipídicas”, conta Sorgi.
Por meio de métodos analíticos de espectrometria de massas, a equipe quantificou os lipídios da classe dos endocanabinoides e da classe dos PAF no plasma dos pacientes estudados. A comparação entre eles levou à descoberta de que a produção dessas biomoléculas estava sendo alterada pela administração de medicamentos glicocorticoides que aumentava a produção de endocanabinoides e a diminuição de PAF. “Isso é muito interessante porque sugere uma nova forma de ação desses glicocorticoides que poderá ser, no futuro, aplicada a outras doenças inflamatórias ou até doenças neurológicas.”
A proposta da equipe agora é agregar tratamentos que têm a mesma ação anti-inflamatória para aumentar a eficácia, “diminuindo o quadro inflamatório e conseguindo reverter os quadros de mortalidade”, completa o professor. Mas admite que ainda são necessários estudos para entender mais profundamente os mecanismos de ação dos glicocorticoides, “assim como qual será a efetividade do tratamento combinado a outros anti-inflamatórios e, até mesmo, ao canabidiol”.
A hipótese, que ainda precisa ser testada, é que medicamentos anti-inflamatórios menos potentes, como os canabinoides, poderiam levar a um melhor equilíbrio nos casos leves e moderados da covid-19. “Mas, nos casos graves, provavelmente isso não será suficiente. Então, talvez o canabidiol possa ser utilizado como terapia combinada, junto ao próprio glicocorticoide”, sugere o professor.
Participaram do estudo pesquisadores das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP), Medicina (FMRP), Odontologia (Forp), Ciências Farmacêuticas (FCFRP) e Escola de Enfermagem (EERP), todas da USP em Ribeirão Preto, além das universidades federais do Amazonas (Ufam) e de São Carlos (UFSCar) e do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Ribeirão Preto.
Nova visualização do vírus da covid-19 – Foto: Fusion Medical Animation/Unsplash
Carlos Arterio Sorgi – Foto: Reprodução/Currículo Lattes
Matéria e fotografia publicada no Jornal USP por Brenda Marchiori.