Representantes de institutos nacionais de saúde pública de 19 países e dirigentes de organizações internacionais e de ministérios da saúde da América Latina e da África participaram do seminário Oficina Conjunta Unasur/CPLP de Atualização Científica e Tecnológica sobre Febre Amarela e Outras Arboviroses Emergentes e Reemergentes. Realizado entre os dias 2 e 6 de outubro no Rio de Janeiro, o seminário teve organização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), da União de Nações Sulamericanas (UNASUL) e da Fiocruz.
O encontro teve temas como surtos de febre amarela recentes (países como Angola, Peru e Brasil, entre outros passaram por suas maiores epidemias da doença em décadas nos últimos dois anos), panoramas da situação atual das arboviroses em vários países, apresentações de métodos de vigilância da doença, investigações de epizootias, métodos de imunização, o papel da informação e da comunicação de emergências sanitárias e recursos de formação à distância, entre outros. Ao fim do seminário, foi esboçada uma série de recomendações a ser entregue a Ministérios da Saúde, atualmente em fase de consolidação.
Ao longo dos cinco dias, insistiu-se que grande parte das causas para a ressurgência atual da enfermidade são comuns aos dois continentes, o que sublinha a necessidade de cooperação internacional para enfrentar a ameaça das arboviroses. Entre estes estão o avanço desordenado de atividades humanas sobre o meio-ambiente, mudanças no uso do solo e a dificuldade do controle de vetores. Somados a outros, estes fatores colocam a ameaça de urbanização da doença em diversas regiões. A existência de particularidades regionais, como hábitos culturais, a expertise acumulada na área e a disponibilidade de recursos, por outro lado, também foi manifestada, o que fez da troca de experiências ainda mais relevante e rica.
Determinantes ambientais e sociais
No primeiro dia do seminário, o coordenador de estratégias de integração regional e nacional da Fiocruz, Wilson Savino, que representou a presidência da instituição, ressaltou que o enfrentamento à febre amarela é “absolutamente necessário e urgente”. Savino afirmou que a Fundação tem papel importante neste enfrentamento, não apenas por ser a maior produtora de vacinas para febre amarela no mundo, mas também por atuar em áreas como vigilância e pesquisa, que permitiram uma rápida resposta ao surto deste ano. “Desde o zika, formamos um gabinete de emergência para responder a surtos. Isto nos permitiu desenvolver estratégias rápidas e eficazes, que podem contribuir para o desenvolvimento e a consolidação da saúde públicas nas Américas e na África”, afirmou.
Representando a Organização Panamericana de Saúde (Opas/OMS), Sylvain Alighieri, em apresentação transmitida por vídeo, fez um histórico da febre amarela nas Américas. Segundo ele, há dois perfis altamente diferentes da doença no continente. O primeiro é de surtos esporádicos em zonas conhecidas, como regiões da Amazônia. O outro perfil é análogo ao vivido pelo Brasil em 2017, de zonas periurbanas. Neste caso específico, o que impressionou foi a velocidade de disseminação da doença. Este caso é preocupante, ele disse, porque coloca a ameaça de uma urbanização da doença. “No topo de nossas preocupações está a transmissão em zonas limítrofes. Podemos falar nestas situações de uma transmissão periurbana com vetores selvagens, o que é uma mudança de paradigma. Temos hoje uma interface silvestre-periurbana-urbana”, afirmou.
Responsável pela área de resposta a epidemias e pandemias da OMS África, Yoti Zabulon afirmou que os mapas das arboviroses se sobrepõem no continente. A situação se complica devido também a doenças concorrentes, como malária, HIV e desnutrição, assim como déficits na capacidade de atendimento médico e meios limitados de financiamento. Segundo Yoti, há, todavia, avanços, como mais de 90% da população vacinada na República Democrática do Congo (RDC). Dentre as intervenções prioritárias, estão campanhas para medir os riscos, a aplicação de regulações internacionais de saúde, a expansão da vacinação em áreas de alto risco e a proteção de trabalhadores em situações de alto risco.
O coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, falou da situação de epidemias à luz da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e da situação global da saúde. Segundo o sanitarista, o documento da ONU se soma a outras recomendações de diversas conferências e análises, que precisam ser postas em prática. “Se 10% de recomendações de conferências da ONU tivessem sido implementadas, nós já viveríamos muito melhor. Temos todas as análises e todas as recomendações [para a melhora da saúde global], tudo está feito. O que falta é vontade política, compromisso e governança”, disse o ex-presidente da Fiocruz.
O diretor do Fórum Itaboraí, Felix Rosenberg, que coordenou diversas mesas, também se referiu aos determinantes sociais da saúde em suas intervenções. “Estamos falando de muitas doenças, não apenas da febre amarela. Temos que pensar em medidas mais globais. Além de prevenir as enfermidades, precisamos procurar o que as determina. Ou então enxugaremos gelo: controlaremos uma, e aparecerão outras”, afirmou.
Desafios em comum
Outras apresentações também enfatizaram que os problemas se repetem em diferentes regiões. Representante da Direção Nacional de Saúde Pública de Angola, Arlete Manuel demonstrou como a ausência de saneamento básico e o acúmulo de lixo, problemas que também acometem o Brasil, é uma das razões para o surto de 2015 e 2016 no país, o maior das últimas décadas. Outras razões, contudo, são particulares ao país: segundo Arlete, a população do norte de Angola tem o hábito de consumir primatas não humanos, o que favorece a propagação da doença. Isto torna a vigilância de epizootias, hoje inexistente no país, crucial. “Hoje não fazemos a vigilância para controlar arboviroses em animais. O seminário deixou claro que precisamos melhorar em muitos aspectos, incluindo este”, afirmou.
Luiz Alberto Sanchez, da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), enfatizou que, em relação a vigilância, o georreferenciamento, que mapeia a propagação da doença, pode ser uma ferramenta da maior importância. “O georreferenciamento aumenta nossa capacidade de prevenir surtos. Ele nos ajuda a identificar os canais endêmicos e fazer mapas a partir disso, o que nos permite antecipar-nos um pouco. Não devemos apenas ser atores de um evento, mas também temos que evitá-los. A prevenção e a antecipação acabam sendo mais econômicas quanto a recursos e a vida de pessoas”, disse.
O tema do georreferenciamento foi o tema da apresentação da pesquisadora da Fiocruz Márcia Chame, que apresentou o Sistema de Informação em Saúde Silvestre (Siss-Geo). A plataforma gera, a partir de registros georreferenciados informados pelos usuários, modelos de alerta de ocorrências de agravos na fauna silvestre, especialmente os com potencial de acometimento humano, e modelos de previsão de oportunidades ecológicas para emergência de doenças. Chame destacou que a doença pode infectar também outros animais além de primatas, como preguiças, e que por isso também é necessário monitorá-las.
Em sua apresentação, a pesquisadora também ressaltou como mudanças ecológicas provocadas pelo homem tornam natural a eclosão de doenças, o que se deve manter em vista ao se pensar em arboviroses. “A espécie humana se vê como uma espécie predadora de topo. Quando se pensa em diversidade de patógenos, isso realmente é verdade. Somos uma espécie generalista, de hábitos alimentares amplos, com períodos de atividade noturnos e diurnos, o que nos torna a melhor espécie no planeta para que um parasita possa se manter. Temos a maior massa de sangue a ser ofertada a vetores. Nada mais normal, portanto, que haja um processo evolutivo de patógenos de busca de humanos, e também de vetores que vêm utilizar sangue para esses processos de evolução. Essa visão é importante quando pensamos em nossas estratégias de vigilância; temos que nos ver nesse processo, ou então buscamos alternativas muito imediata”, disse.
Máximo Manuel Espinosa Silva, do Instituto de Saúde do Peru, por sua vez, destacou que o país não tem surtos de febre amarela urbana há quase um século, mas que, desde os anos 1930, a doença é endêmica em áreas silvestres. Em 2015, um surto voltou a trazer a sombra da ameaça de urbanização. A resposta do país foi vacinar pessoas em áreas de risco e também viajantes. “Temos uma quantidade muito grande de migrantes, que viajam para trabalhos legais ou ilegais. Populações como plantadores ilegais de coca, que praticam extração de ilegal de madeira, e mineradores ilegais são especialmente vulneráveis. É difícil alcançar estas populações, mas trabalhamos para fazer isso”, disse.
Mesmo países que não registraram casos recentes de febre amarela manifestaram interesse no seminário. Foi o caso da Argentina, que não registra nenhum caso desde 2009, mas que mandou Christian Dokmetjian, diretor do Instituto Nacional de Produção de Biológicos. O instituto tem interesse em obter transferência tecnológica para começar a fabricação da vacina, e atualmente discute com o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) esta possibilidade. “Nossas plantas têm capacidade para produzir o insumo e há predisposição de Bio-Manguinhos para isso. A próxima etapa deve ser uma visita de representantes da Fiocruz às nossas instalações, para avaliar a cooperação”, afirmou.
Recomendações
Os dois últimos dias de seminário foram dedicados à formulação e elaboração de propostas para serem enviadas a Ministérios da Saúde, relacionadas a cooperação internacional e medidas a nível local e nacional. É esperado que o tema esteja na agenda em uma reunião de Ministros da Saúde da CPLP que acontece na Fiocruz Brasília no dia 26 de outubro.
Atualmente em fase de consolidação, as propostas incluem medidas de vigilância como sistemas de informação em comum, a formação de um grupo de trabalho na área de entomologia e uma maior coordenação entre a área clínica e a epidemiológica.
Fonte: André Costa / Agência Fiocruz de Notícias