Os avanços no entendimento das alterações genéticas tumorais ocorreram de maneira muito rápida e profusa, bem como as tecnologias para identificá-las, que se estenderam muito além dos exames tradicionais de imuno-histoquímica (IHQ), hibridização in situ fluorescente (FISH) e reação de polimerase em cadeia em tempo real para amplificação e identificação de variações e mutações gênicas (PCR-RT), empregados pela comunidade oncológica brasileira.
Graças ao avanço tecnológico, são possíveis a identificação de hiperexpressão ou amplificação de HER2, mutações de EGFR, RAS e BRAF, além da fusão de ALK e ROS1, para exames muito mais complexos e sofisticados, como o sequenciamento de nova geração (NGS) e os exames por PCR digital, como dd-PCR (digital em gotas) e o BEAMING (beads, emulsions, amplification and magnetics), os quais oferecem maior sensibilidade para a detecção de alterações gênicas em amostras com quantidades restritas de DNA tumoral, como nas chamadas biópsias líquidas, as quais serão cada vez mais utilizadas, pois poupam os pacientes de biópsias desnecessárias.
O PCR digital implica custos menores que o NGS e maior rapidez nos resultados. Essas ferramentas são essenciais para a oncologia de precisão ou personalizada. No caso do NGS, há particularidades que precisam ser reconhecidas e entendidas por quem solicita tais exames, principalmente no que se refere aos resultados obtidos por cada uma dessas tecnologias. Por exemplo, é fundamental saber a necessidade de uma análise restrita (de um ou poucos genes) ou multigênica, identificar alterações ou mutações pontuais e predeterminadas (hotspots), ou de regiões gênicas mais abrangentes, ou mesmo de todo o exoma tumoral (comprehensive sequencing).
Os painéis em NGS disponíveis no mercado brasileiro variam entre aqueles com quantidade menor de genes e hotspots e os mais completos, que chegam até mais de 300 genes e permitem analisar extensas regiões gênicas, inclusive de todo o exoma. O sequenciamento completo de genoma (WGS, do inglês whole genoma sequencing) costuma ser realizado quando as alterações moleculares buscadas não são previamente conhecidas (p. ex., nos tumores raros) ou se a quantificação total da carga mutacional (TMB) precisa ser estabelecida. Essa ferramenta encontra obstáculo em seu elevado custo, necessidade de análises complexas de bioinformática, maior tempo para a execução, necessidade de experts para sua interpretação, além da eventual inutilidade da detecção de mutações ou variações gênicas para as quais não existem terapia ou medicamentos-alvo desenvolvidos.
Na maioria das situações, painéis mais restritos e mais baratos podem ser utilizados, pois eles detectam com relativa precisão mutações, alterações do número de cópias e rearranjos gênicos necessários para a correta seleção da terapia a ser empregada. Já para a biópsia líquida, a quantidade de DNA livre circulante extraído do sobrenadante do sangue periférico é restrita (menos de 1%). Embora existam exames oferecidos em PCR-RT, como o COBAS (aprovado pelo FDA), para a análise do EGFR (incluindo a mutação de resistência T790-M), o qual oferece uma especificidade elevada, o problema recai na relativa baixa sensibilidade, o que demanda excessivamente a execução de uma nova biópsia tumoral, quando seu resultado é negativo.
Promovida pela Americas Health Foundation (AHF), um grupo de profissionais brasileiros especializados em oncologia realizou uma reunião de consenso sobre o tema.1 Esse grupo apontou os desafios associados à implementação da tecnologia NGS em oncologia no Brasil.
Todos os pacientes com plano de saúde privado têm o direito de se submeter a procedimentos medicamente necessários incluídos em lista publicada pela Agência Nacional de Saúde (ANS). Essa lista é revisada a cada dois anos por um comitê de especialistas formado por delegados de várias partes interessadas, como associações médicas, governo, indústrias farmacêuticas, seguros de saúde e entidades de defesa do paciente. O comitê faz uma análise técnica para considerar critérios como eficácia clínica, impacto orçamentário e disponibilidade de infraestrutura para realizar o procedimento em todo o país.
Devido a complexas barreiras regulatórias, custo e necessidade de diretrizes de controle de qualidade, pessoal especializado e robusta infraestrutura de bioinformática, a adoção de tecnologias de NGS requer o uso de uma metodologia especializada, bem como uma equipe altamente treinada para coletar e interpretar dados com precisão. Como resultado, surgem grandes desafios, tanto de nível técnico (p. e.x., gerenciamento de dados e padronização do controle de qualidade) como de interpretação de dados e sua aplicação no ambiente clínico.
Apesar desses desafios, o Brasil poderia emergir como um modelo para alcançar as oportunidades oferecidas pelo sequenciamento de próxima geração em oncologia para a América Latina. Embora as tecnologias de NGS sejam uma ferramenta crucial na identificação de variantes genéticas clinicamente acionáveis, a abrangência e a complexidade das informações adquiridas levantam novos desafios de análise e interpretação adequadas.
Além disso, mesmo quando variantes genéticas relevantes são identificadas, há muitos fatores que afetam a resposta do paciente, como metabolismo intrínseco de fármacos, antecedentes genéticos e heterogeneidade de tumores. Várias questões permanecem sem resposta quanto ao grau de aprimoramento da tecnologia de sequenciamento genômico, no que se refere a resultados de pacientes, identificação de indivíduos que poderiam se beneficiar mais dessas tecnologias e avaliação de eventuais consequências negativas. Essas questões representam um grande desafio para governos e autoridades de saúde pública encarregados de planejar a alocação de recursos para a prestação de cuidados futuros. Um dos desafios apontados pelo painel envolve determinar, com base no perfil molecular do tumor de um paciente, qual medicamento provavelmente funcionará melhor. Embora esse medicamento possa estar disponível no mercado local, existe um risco considerável de que ele não seja registrado para uma determinada doença, incentivando a prescrição off-label, portanto, sujeito a limitações de reembolso.
O painel identificou diversas ações que devem ser implementadas pelas comunidades governamentais e científicas brasileiras e pelas organizações não governamentais (ONG) para enfrentar os desafios presentes no desenvolvimento e uso do sequenciamento de nova geração em oncologia para o Brasil. O painel sugere que o governo deva liderar iniciativas para reunir as partes interessadas dos setores privado e público – instituições acadêmicas e associações da indústria farmacêutica, médicas e de pacientes – para fazer análises comparativas de custo-efetividade a fim de melhor informar a alocação de recursos para o tratamento do câncer.
A avaliação de terapias direcionadas pode ser um desafio quando a mutação em questão é rara e encontrada em várias doenças diferentes. A via tradicional de aprovação de medicamentos, envolvendo estudos de fase 1 a 3, baseia-se em grandes estudos clínicos comparativos e pode não ser mais a melhor abordagem. Ao considerar abordagens de tratamento, a classificação genética de um tumor pode não seguir os limites tradicionais de histopatologia. Além disso, quando o desenvolvimento do tumor depende de uma via específica e a terapia-alvo inibe de maneira confiável esse alvo, o equilíbrio pode ser comprometido pela possibilidade de alguns pacientes não receberem esse tratamento específico. Assim, um ensaio randomizado tradicional não seria eticamente justificável.
O tratamento eficaz de todas as anormalidades genéticas potencialmente analisadas em cada paciente requer novos desenhos de estudos e métodos estatísticos, o que poderia levar a projetos menores, mas mais precisos, como cestas, guarda-chuva e testes adaptativos. O governo deve patrocinar a criação de um banco de dados nacional de mutações genéticas e agentes terapêuticos direcionados, guiados pelo sequenciamento de nova geração, para que os pacientes que recebem essa terapia possam ser rastreados, com informações disponibilizadas aos médicos, pagadores, fabricantes de medicamentos e órgãos reguladores. Os bancos de dados colaborativos devem encorajar as instituições privadas e públicas a compartilhar dados do mundo real que podem ser armazenados e analisados. Tal iniciativa poderia facilitar a caracterização de mutações raras e vincular descobertas genômicas com resultados de terapias direcionadas.
Dados genômicos baseados na população também devem ser incluídos para explicar a diversidade étnica da população brasileira, o que permitirá o uso de painéis de sequenciamento de próxima geração mais abrangentes em um futuro próximo. Associações médicas e organizações de pacientes devem desenvolver atividades de educação e conscientização para melhor informar os pacientes e profissionais de saúde sobre usos, aplicações e limitações do sequenciamento de próxima geração. Instituições acadêmicas e associações médicas devem colaborar para desenvolver educação médica continuada sobre genômica do câncer. As associações médicas também devem reunir diferentes interessados em NGS para estabelecer diretrizes nacionais para detecção, teste, diagnóstico, aconselhamento e vigilância dos exames. As partes interessadas devem considerar se a centralização dos serviços de patologia molecular poderia facilitar a viabilidade da tecnologia em um ambiente universal de saúde. Embora as desvantagens dessa abordagem incluam o transporte de amostras e a padronização de fatores pré-analíticos, as plataformas de NGS exigem despesas substanciais de capital, pessoal especializado e uma robusta infraestrutura de bioinformática, o que poderia tornar uma abordagem centralizada mais rápida, mais precisa, mais escalável e possivelmente mais acessível. Também precisamos garantir que a autonomia e a privacidade dos pacientes sejam protegidas ao realizar o sequenciamento de próxima geração.
Todas as partes interessadas precisam estar cientes de que medicamentos e novos tratamentos mais eficazes só podem ser oferecidos aos pacientes após pesquisas e investimentos científicos indicarem dados de alta qualidade a partir de ensaios clínicos. Além disso, a colaboração internacional e a especialização em pesquisa genômica irão melhorar o conhecimento clínico e apoiar o desenvolvimento de capacidades científicas para tecnologias de sequenciamento de próxima geração.
Finalmente, cabe ressaltar que a tecnologia NGS também pode ser utilizada para a identificação e o diagnóstico de síndromes de predisposição hereditária ao câncer. Nessa situação, todas as células do corpo têm a mesma alteração genética. Desse modo, para o sequenciamento, o DNA é extraído de material da saliva ou do sangue. No caso de suspeita de síndrome hereditária (história de cânceres em membros da família, especialmente se ocorridos em idade abaixo dos 55 anos), pôde-se realizar a pesquisa em genes específicos (p. ex., BRCA-1 e BRCA-2) ou por meio de painéis multigênicos. A tendência atual é optar por painéis multigênicos de triagem com cerca de 25 a 30 genes, pois boa parte das principais síndromes hereditárias são “imbricadas”, ou seja, podem desenvolver câncer em vários órgãos, dificultando o reconhecimento clínico das mesmas e, consequentemente, dos genes responsáveis pela síndrome. Por isso, ao fazer o teste em apenas um ou dois genes, corre-se o risco de resultado negativo, exigindo a realização de vários testes em série e aumentando os custos dos exames. Uma vez identificadas as síndromes, medidas preventivas e de rastreamento podem ser implementadas com eficiência, como as cirurgias redutoras de risco, mastectomias, ooforectomias, tiroidectomias, colectomias ou gastrectomias.
A seguir, são listadas as ações sugeridas pelo painel de especialistas para implementação e expansão do acesso à tecnologia NGS no Brasil:
- Autonomia e privacidade.
- Custo-efetividade.
- Banco de dados genético.
- Diretrizes nacionais.
- Educação médica.
- Acreditação e qualidade.
- Conscientização e educação.
Referência bibliográfica
1. Santos M, Coudry RA, Ferreira CG, Stefani S, Cunha IW et al. Increasing access to next-generation sequencing in oncology for Brazil. Lancet Oncol. 2019 Jan;20(1):20-23.
Com informações de Academia de Medicina, texto de André Marcio Murad.