O PAPEL DOS LABORATÓRIOS DE ANÁLISES CLÍNICAS NO CONTEXTO DO AUTISMO

Autores: 

Luciana Souza Chavasco Vargas1 

Luiz Filipe Costa2 

  1. Farmacêutica Bioquímica – Responsável Técnica pelos Laboratórios CHAVASCO – Três Corações, MG. 

Discente do Curso de Medicina da Universidade Professor Edson Antônio Vellano, Unifenas – Alfenas, MG. 

 

  1. Professor Me. do Curso de Medicina da Universidade Professor Edson Antônio Vellano, Unifenas – Alfenas, MG. 

 

O Autismo foi originalmente definido por Leo Kanner em 1943 como uma incapacidade inata de criar contato emocional habitual, biologicamente pré-determinado, com outras pessoas. Transtornos do espectro autista (TEA) são condições persistentes do neurodesenvolvimento identificados geralmente na primeira infância, caracterizados por deficiente interação e comunicação social, padrões estereotipados e repetitivos de comportamento, além do desenvolvimento intelectual irregular. É consenso na literatura que a falta de reciprocidade social é uma das principais características desta condição.¹,²

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência em nível mundial do autismo abrange aproximadamente de 1 a 2% das crianças e adolescentes em todo o mundo³. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que 1% da população seja autista, ou seja, cerca de dois milhões de pessoas. Os casos diagnosticados têm crescido entre adultos e crianças, no entanto, ainda não está definido se esse aumento está relacionado à identificação de novos casos por meio dos critérios diagnósticos, ao aumento da incidência do TEA ou às diferentes metodologias das pesquisas direcionadas a esse público.⁴ 

Um achado interessante envolvendo tanto amostras clínicas quanto epidemiológicas mostra uma maior incidência de autismo em meninos do que em meninas, com proporções médias relatadas de cerca de 3,5 a 4,0 meninos para cada menina. Estes estudos recentes sugerem um efeito protetor feminino, uma característica que pode atenuar a manifestação do TEA em meninas e mulheres. A teoria foi descoberta na década de 1980 pelo pesquisador Luke Trai, da Universidade de Michigan, que observou que meninas autistas precisam herdar mais fatores genéticos relacionados ao autismo do que meninos. Outras teorias foram propostas, como o envolvimento do cromossomo sexual na etiologia do TEA e o papel das influências hormonais no útero, no entanto, mais estudos serão necessários para completa elucidação.² 

Semelhante a outras doenças psiquiátricas, os transtornos do espectro autista são diagnosticados com base no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), um manual produzido pela Associação Americana de Psiquiatria para ajudar os médicos no diagnóstico de doenças mentais. Distúrbios comportamentais e psiquiátricos em indivíduos com TEA são frequentes e estão associados com irritabilidade, agressão, comportamentos autolesivos, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, disforia de gênero, transtornos de humor, psicose, entre outros. Tais distúrbios podem se sobrepor às características centrais do TEA, aumentando os desafios do diagnóstico. O risco de transtornos comportamentais e psiquiátricos concomitantes é influenciado por diferenças individuais, incluindo idade, sexo e fatores genéticos. 

Os avanços nas pesquisas em genética humana têm aberto caminhos para o conhecimento das vias biológicas das doenças cognitivas e afetivas, bem como de certas psicoses. Devido à grande dificuldade de compreensão das alterações das funções encefálicas, o conhecimento da fisiopatologia do sistema nervoso tem se tornado um grande atrativo. Estudos de famílias, com um ou mais membros afetados, bem como estudos de gêmeos e adoção, têm demonstrado que doenças mentais, como o autismo, têm um forte componente genético envolvido.  

Sabe-se que os genes desempenham um papel central na fisiopatologia do autismo e de suas condições relacionadas. A primeira triagem ampla de todo o genoma para regiões cromossômicas envolvidas no autismo clássico associou aproximadamente 354 marcadores genéticos, localizados em oito regiões dos seguintes cromossomos: 2, 4, 7, 10, 13, 16, 19 e 22. Estudos posteriores apontam as regiões 7q, 16p, 2q, 17q como as mais significativas. Recentemente, surgiu evidência de ligação com o cromossomo X.⁷,₁₀

A região 15q11-13, por exemplo, crítica para as síndromes de Prader-Willi e de Angelman, apresenta alteração em 1 a 4% dos pacientes autistas. Aberrações estruturais na região 17p11.2, crítica para a síndrome de Smith-Magenis, também foram relatadas em pacientes autistas. Do mesmo modo, pacientes com esclerose tuberosa, síndrome de Rett, fenilcetonúria, neurofibromatose ou síndrome do X-frágil associado ao autismo formam subgrupos etiológicos. Aproximadamente 30% dos indivíduos com X-frágil apresentam espectro autista.⁷,₈ 

A descoberta do envolvimento dos vários genes no autismo pode representar um desafio ainda maior que em outras condições, devido às particularidades do diagnóstico. O diagnóstico do autismo deverá resultar de um minucioso histórico evolutivo do paciente e inquérito familiar a respeito das habilidades cognitivas e comportamentais do mesmo. A investigação clínica confirmará ou não, se o autismo está associado às síndromes mencionadas.₈,⁹

O papel dos Laboratórios de Análises Clínicas no contexto do autismo começa no atendimento. Aprimorar o atendimento deste público requer conhecimento, sensibilidade e ações específicas que garantam respeito e conforto a estes indivíduos durante todo o fluxograma de atendimento. A fim de tornar o ambiente laboratorial mais inclusivo, acolhedor e adequado, sugere-se a adoção das seguintes estratégias: 

  • Comunicação clara e objetiva: A comunicação é um ponto-chave para o sucesso do atendimento. Com as pessoas autistas, esta deve ser ainda mais clara e objetiva, evitando o uso do sentido figurado ou conotação. A linguagem funcional é importante para que a pessoa autista se faça entender e passe uma mensagem efetiva. O ideal é que o passo a passo do procedimento seja explicado de forma objetiva. Criar uma rotina visual ou verbal pode ajudar a estabelecer uma previsibilidade que tranquilize o paciente. 

 

  • Ênfase na rotina e previsibilidade: Os autistas costumam se beneficiar de rotinas e previsibilidade. Antecipar os próximos passos do procedimento, como a inserção de agulha ou o uso de algodão, ajuda a reduzir a ansiedade. Uma abordagem como “Vou limpar a área com um algodão e depois farei a coleta de sangue” proporciona uma compreensão clara do que vai acontecer. 

 

  • Empatia e flexibilidade: Demonstrar empatia é fundamental. Reconheça que o ambiente do laboratório pode ser desconfortável para muitos pacientes. Flexibilidade é a chave para lidar com possíveis mudanças nos planos ou procedimentos. Esteja aberto a adaptar a abordagem de acordo com as necessidades individuais do paciente. 

 

  • Ambiente Flexível e Sensorialmente Confortável: O primeiro passo para proporcionar um atendimento positivo é criar um ambiente que leve em consideração as sensibilidades sensoriais dos pacientes autistas. Aspectos como iluminação, ruídos e estímulos visuais devem ser ajustados para minimizar desconfortos. É essencial adotar um tom de luz suave e garantir que o ambiente seja tranquilo, favorecendo uma experiência menos aversiva. 

 

  • Coleta domiciliar: A coleta domiciliar pode minimizar os danos relacionados ao sofrimento de estar em um ambiente médico, laboratorial. O ambiente domiciliar e a manutenção da rotina fornecem um sentido de ordem e previsibilidade aos autistas, reduzindo a ansiedade e melhorando a compreensão dos processos.  

 

  • Avaliação do bem-estar do paciente: É crucial verificar regularmente se o paciente está se sentindo à vontade e acolhido. Pergunte se estão confortáveis com a situação e esteja disposto a ajustar o ambiente ou procedimento caso necessário. Essa interação constante ajuda a construir confiança e promove um ambiente mais positivo. 

Na tentativa de aliviar ou prevenir o sofrimento de uma criança durante procedimentos médicos laboratoriais, pesquisadores empregaram uma série de estratégias diferentes, muitas das quais baseadas em terapia cognitivo-comportamental (TCC).11 A TCC ajuda a reduzir a ansiedade e a enfrentar gradualmente as fobias, por meio de técnicas que trabalham a cognição, as emoções e o comportamento. No caso de fobia por agulhas, pesquisadores aplicaram um protocolo combinado, envolvendo treinamento de relaxamento e exposição gradual, com o objetivo de causar uma dessensibilização sistemática até que a criança estivesse pronta para a coleta.9 Em casos raros, na presença de comportamento de difícil manejo, o procedimento deve ser realizado após uma sedação, em centros especializados e sob monitorização médica. A sedação visa gerenciar melhor os padrões comportamentais, garantindo a segurança e a conclusão do procedimento. ⁹,¹¹ 

Até o presente momento, não existem exames laboratoriais específicos para o diagnóstico do autismo, porém estes pacientes exigem uma demanda laboratorial rotineira de marcadores gerais de saúde como por exemplo: hemograma completo, dosagem da glicemia, dosagem de vitaminas e hormônios, monitorização terapêutica de medicamentos, entre outros. 

Mesmo na ausência de um marcador molecular ou bioquímico específico para o autismo, o esclarecimento da etiologia do transtorno através do diagnóstico genético traz vários benefícios para o paciente e sua família. O diagnóstico genético promove um aconselhamento genético mais adequado para a família, o esclarecimento dos riscos de futuros membros da família também serem portadores do TEA, possíveis outros sintomas associados, em casos sindrômicos, por exemplo, além de contribuir para eliminar exames desnecessários. 

Os testes genéticos são importantes ferramentas para auxiliar na compreensão da causa de TEA e podem ser indicados, dependendo de fatores individuais, como sinais clínicos característicos de alguma síndrome, por exemplo, dismorfismos craniofaciais, histórico familiar de transtorno do espectro autista ou doenças psiquiátricas. Para a maioria dos casos de autismo, não há sinais clínicos que indiquem uma alteração genética específica. No entanto, o TEA pode ser parte dos sintomas de doenças monogênicas ou, mais raramente, metabólicas. Dentre elas, três destacam-se a síndrome do X-frágil, a síndrome de Rett, e a síndrome de Cowden.¹² 

Existem diretrizes internacionais com recomendações sobre o protocolo de investigação etiológica do TEA. Um dos primeiros a ser estabelecido foi o do Colégio Americano de Genética Médica, em 2013. De maneira geral, as diferentes diretrizes recomendam que, primeiramente, seja feita uma avaliação clínica morfológica cuidadosa do paciente junto a avaliação da história familiar, investigando, por exemplo, se o paciente possui características físicas (dismorfismos) indicativas de alguma síndrome. Caso haja suspeita de síndrome, sugere-se que seja realizado o teste genético molecular mais adequado13. No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, no rol de procedimentos e eventos em saúde de 2018, determina que o microarray genômico seja realizado apenas após um resultado normal no cariótipo e no teste para síndrome do X-frágil.7 

Nas últimas duas décadas, com o avanço das técnicas de análise genética, como o Sequenciamento de Nova Geração (NGS) e o microarray, tem-se visto um aumento considerável na proporção de casos de autismo com causa esclarecida. Além do microarray genômico, pode ser recomendado que: 

  • Pacientes do sexo masculino façam o teste da síndrome do X-frágil (gene FMR1). 
  • Pacientes do sexo feminino façam sequenciamento do gene MECP2.  
  • Pacientes com macrocrania (perímetro cefálico maior do que 2,5 desvios padrão acima da média para a idade) realizem o sequenciamento do gene PTEN. 

Alguns protocolos consideram realizar o teste da síndrome do X-frágil em pacientes do sexo feminino que apresentarem alguns sinais clínicos suspeitos ou histórico familiar, e o sequenciamento do gene MECP2 em pacientes do sexo masculino com sinais clínicos suspeitos. Recentemente, com a popularização do (NGS, o sequenciamento do genoma completo, do exoma, e os painéis de genes se tornaram mais acessíveis e começaram a ser utilizados para esclarecer casos de autismo sem diagnóstico conclusivo mesmo após a realização dos outros exames.¹³

Enfim, os testes genéticos são importantes ferramentas para auxiliar na compreensão da causa do autismo e podem ser indicados, a depender de fatores individuais e com base na recomendação médica. Ao estabelecer um diagnóstico genético, é possível fornecer aconselhamento genético mais preciso para a família, ressaltando os riscos para outros membros (atuais e futuros) da família quanto ao desenvolvimento do TEA. Além disso, seria possível ainda, a identificação de possíveis sintomas associados, abrindo portas para opções como a fertilização in vitro através da seleção de embriões, o que reduziria a realização desnecessária de exames inespecíficos e/ou desnecessários, entre outros benefícios. 

 

 

 

REFERÊNCIAS 

 

  1. Hobson, H. et al. Towards reproducible and respectful autism research: Combining open and participatory autism research practices. Research in Autism Spectrum Disorders, v. 106, n.5, 2023. 

 

2. CHASTE, Pauline; LEBOYER, Marion. Autism risk factors: genes, environment, and gene-environment interactions. Dialogues in Clinical Neuroscience, v. 14, n. 3, p. 281-292, 2012. 

 

3. ZEIDAN, J. et al. Global prevalence of autism: A systematic review update. Autism Research, v. 15, n. 5, p. 778–790, 2022.  

 

4. COSTA, A. A. et al. Transtorno do espectro do autismo e o uso materno e paterno de medicamentos, tabaco, álcool e drogas ilícitas. Cien Saude Colet, v. 29, n.2, p. 1-12, 2024.  

 

5. Robinsona, E. B. et al.Examining and interpreting the female protective effect against autistic behavior. PNAS, v.110, n.13, p. 5258–5262, 2013.  

 

6. Genovese, A; Butler, M. G. The Autism Spectrum: Behavioral, Psychiatric and Genetic Associations. Genes, v. 17, n. 677, p. 2-21, 2023. 

 

7. Carvalheira, G. et al. Genética do autismo. Rev Bras Psiquiatr, v. 26, n. 4, p. 270-272, 2004.  

 

8. Finucane, B; Myers, S. M. Genetic Counseling for Autism Spectrum Disorder in an Evolving Theoretical Landscape. Curr Genet Med Rep, v. 4, p. 147-153, 2016. 

 

9. Davit, C. J. A pilot study to improve venipuncture compliance in children and adolescents with Autism Spectrum Disorders. J Dev Behav Pediatr, v. 32, n. 7, p. 521-525, 2011.  

 

10. Wiśniowiecka-Kowalnik, B; Nowakowska, B. A. Genetics and epigenetics of autism spectrum disorder-current evidence in the field. Journal of Applied Genetics, v. 60, p. 37-47, 2019. 

 

11. Gosling, C. J. et al. Efficacy of psychosocial interventions for Autism spectrum disorder: an umbrella review. Mol Psychiatry, v. 27, n. 9, p. 3647-3656, 2022.  

 

12. Herman, G. E. et al. Genetic testing in autism: how much is enough? Genetics in Medicine, v. 9, n. 5, p. 268-274, 2007.  

 

13. Schaefer, G. B. et al. Clinical genetics evaluation in identifying the etiology of autism spectrum disorders: 2013 guideline revisions. Genet Med, v. 15, n. 5, p. 399-407, 2013.