A covid-19 é uma doença multissistêmica com diversas manifestações extrapulmonares, incluindo cardiovasculares, renais, gastrointestinais e hematológicas. Além de alterações laboratoriais que refletem um aumento da atividade inflamatória, o hemograma e os parâmetros da coagulação também estão frequentemente desregulados na covid-19 grave.
As manifestações hematológicas da infecção pelo SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) vêm recebendo destaque em diversas publicações recentes.
Esse artigo reúne informações de uma revisão publicada na edição de julho no periódico Leukemia & Lymphoma, de uma revisão publicada em abril no American Journal of Hematology, ambas focadas nas alterações hematológicas, e de uma revisão publicada no International Journal of Laboratory Hematology sobre alterações laboratoriais em geral na covid-19.
Alterações no hemograma
Durante o período de incubação e na fase inicial da doença, quando sintomas inespecíficos estão presentes, a contagem de leucócitos e linfócitos está geralmente normal ou discretamente reduzida. Com o passar dos dias e com o agravamento do quadro inflamatório sistêmico, surge uma linfopenia significativa.
Vários fatores parecem contribuir para a linfopenia na covid-19. Por exemplo, já foi mostrado que os linfócitos expressam o receptor da enzima conversora de angiotensina (ECA) em sua superfície, o que os tornam alvos diretos da infecção intracelular pelo SARS-CoV-2. Além disso, o aumento das interleucinas (IL) e do fator de necrose tumoral pode promover a apoptose de linfócitos e a atrofia de órgãos linfoides. A presença de acidose lática também inibe a proliferação dos linfócitos.
Em pacientes hospitalizados, a prevalência da linfopenia é de até mais de 80% dos casos, podendo ultrapassar 90% quando apenas casos graves são considerados. A linfopenia já foi estatisticamente associada a gravidade, risco de insuficiência respiratória e lesão do miocárdio, e maior mortalidade.
A trombocitopenia também é uma alteração frequente (presente em até 60% dos pacientes hospitalizados), que parece estar associada a desfechos negativos, como maior gravidade e morte. A intensidade da queda da contagem plaquetária parece estar linearmente associada à sobrevida.
No entanto, na maioria das situações, o SARS-CoV-2 não causa uma redução suficientemente significativa da contagem plaquetária a ponto de causar complicações hemorrágicas.
Em termos de fisiopatologia, também se acredita que a trombocitopenia tenha um mecanismo multifatorial. A hipótese é que a covid-19 interfira na produção das plaquetas na medula óssea, além de levar a aumento da destruição periférica por um fenômeno mediado por mecanismos imunológicos, de forma semelhante ao que ocorre em outras infecções virais. Por fim, em pacientes graves que evoluem com coagulação intravascular disseminada (CIVD), o dano endotelial causa hiperativação de plaquetas e trombose, levando à queda da contagem plaquetária.
Um pequeno estudo também avaliou as alterações dinâmicas na contagem plaquetária ao longo da hospitalização, e constatou que o surgimento de picos no número de plaquetas durante o tratamento da covid-19 estava associado a mau prognóstico. A hipótese dos autores é que esses picos estão associados à intensidade da tempestade de citocinas.
Uma outra possível alteração no hemograma, menos frequentemente avaliada nos estudos, é a neutrofilia. Os dados disponíveis sugerem que o aumento da contagem de neutrófilos é uma expressão da tempestade de citocinas e de um estado hiperinflamatório. Além disso, anomalias morfológicas, como hiposegmentação de núcleos e apoptose, são descritas nos granulócitos circulantes. A neutrofilia também pode representar a presença de infecção bacteriana secundária.
Alterações da coagulação
Transtornos da coagulação são relativamente frequentes na covid-19, especialmente em casos graves.
As alterações do D-dímero são as de maior destaque, ocorrendo em aproximadamente 40% a 50% dos pacientes. A dinâmica do D-dímero pode refletir a gravidade da doença, e seus níveis aumentados estão associados a eventos adversos, como maior risco de envolvimento cardíaco, necessidade de tratamento intensivo e mortalidade intra-hospitalar.
Elevações do tempo de protrombina, tempo de tromboplastina ativada e de produtos de degradação da fibrina frequentemente acompanham o aumento do D-dímero, com um impacto prognóstico semelhante.
A fisiopatologia das manifestações relacionadas com a coagulação ainda precisa ser mais bem elucidada em novos estudos, mas acredita-se que a desregulação imunológica e a disfunção endotelial tenham um papel causal.
Diversas infecções podem levar a uma ativação de uma resposta inflamatória sistêmica que desencadeia uma cascata de coagulação descontrolada e não funcional no sentido de manutenção de hemostasia, que leva a coagulação intravascular disseminada e falência de múltiplos órgãos.
Dessa forma, a sepse associada à covid-19 pode causar um processo inflamatório trombótico por meio da liberação de citocinas que ativam células endoteliais e monócitos, levando a secreção de fator tissular e fator de Von Willebrand, ativação de plaquetas e iniciação da fibrinólise.
Classicamente, a coagulação intravascular disseminada é associada a quadro clínico de hemorragias, entretanto, na covid-19, observam-se mais frequentemente os processos trombóticos que os sangramentos. Por tal motivo, autores sugerem que o termo “coagulopatia associada à covid-19” seja preferencialmente utilizado.
Cerca de 25% dos pacientes com covid-19 apresentam eventos tromboembólicos, e esse número aumenta para mais de 40% entre os pacientes que necessitam de terapia intensiva. Esses eventos podem ser tanto venosos como arteriais. A incidência de doença cerebrovascular também é maior entre pacientes com infecção pelo novo coronavírus.
Dessa forma, todo paciente com covid-19, mesmo casos leves ambulatoriais, deve ter o risco de trombose avaliado, e a profilaxia com heparina de baixo peso molecular deve ser considerada e frequentemente reavaliada.
Perspectivas
À medida que a pandemia avança, mais estudos são concluídos, trazendo mais dados a respeito das implicações diagnósticas e prognósticas das manifestações hematológicas da covid-19.
Mais estudos são necessários para uma definição de aspectos como a melhor estratégia para profilaxia e tratamento de tromboses, bem como a utilidade de parâmetros laboratoriais hematológicos para definição do prognóstico e tratamento.
Com informações de Manifestações hematológicas na covid-19 – Medscape – 29 de julho de 2020 (texto de Dra. Sabrine Teixeira Grünewald, MSc).