“Isso não vai parar enquanto não frearmos o crescimento da epidemia” – postou recentemente nas redes sociais o virologista Dr. Tiago Gräf, Ph.D., da Rede Genômica Fiocruz, que reúne especialistas de diversas áreas com o intuito de estudar e acompanhar as mutações genéticas do SARS-CoV-2.
A frase, que soou como um grito de socorro – e talvez seja –, também é a conclusão de um novo trabalho de monitoramento que mostrou como a P.1 e outras variantes brasileiras continuam adquirindo mutações e se adaptando perigosamente à sua população de hospedeiros. Um achado muito preocupante na semana em que a curva ascendente de doentes e mortos, e a escassez de recursos humanos e insumos farmacológicos, dominava os noticiários nacionais e internacionais.
“Até outubro, estávamos vendo no SARS-CoV-2 uma evolução dentro do que era previsível. Os coronavírus não mudam tão rápido como outros vírus de RNA porque têm um sistema de correção que estes últimos não têm. Até então, o vírus vinha mantendo uma taxa de mutação constante. Começamos a ver uma aceleração quando começaram a aparecer as variantes de atenção identificadas inicialmente no Reino Unido, na África do Sul e em Manaus. E agora vemos que o SARS CO-V-2 está evoluindo em ritmo acelerado. Isto não foi visto apenas em uma linhagem, mas em diferentes linhagens, e as alterações estão convergindo. Isso só pode ser uma coisa benéfica para o vírus”, disse ao Medscape o virologista e pesquisador em Saúde Pública Dr. Felipe Naveca, vice-diretor de Pesquisa e Inovação do Instituto Leônidas e Maria Deane, da Fiocruz Amazônia.
O trabalho, divulgado em pre-print [1] – ainda sem revisão por pares – mostra que a transmissão descontrolada está gerando novas linhagens virais potencialmente mais resistentes à neutralização por anticorpos.
“Há pessoas que já estão ficando imunes à P.1, que está circulando agora. Mas ela está mudando, então já tem um tipo de alteração que pode fazer com que os anticorpos que a pessoa desenvolveu contra essa região do vírus não funcionem”, explicou o Dr. Tiago Gräf que é pesquisador no Instituto Gonçalo Moniz, Fiocruz-BA.
O Dr. Felipe Naveca concorda. “Se o vírus perde uma região que liga anticorpos, pelo menos estes anticorpos não vão neutralizá-lo mais. O medo é que, no futuro, a presença destas variantes afete a eficácia das vacinas e facilite a reinfecção.” Outra possibilidade é que variantes de interesse (VOI, do inglês, variant of interest) possam ser “alçadas” a variantes de atenção, ou VOC (do inglês, Variants of Concern).
Entenda a mudança
Desde o início da pandemia é esperado que as mutações virais aconteçam. Além das mutações de ponto, que são trocas de nucleotídeos em um determinado lugar do genoma, os vírus também podem perder ou ganhar porções de material genético. A biologia molecular tem um termo para isso: indel (do inglês, in sertion or deletion). Estas inserções ou deleções de bases no genoma de um organismo constituem uma mudança mais brusca do que uma mutação de ponto. Quando ocorrem na proteína da espícula (S) podem modificar a forma do SARS-CoV-2, permitindo que ele escape ao ajuste do bloqueio “chave e fechadura” dos anticorpos.
Os pesquisadores da Fiocruz estudaram variantes em circulação no Brasil entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021 e observaram uma mudança importante: se antes algumas variantes tinham mutações na região RBD (do inglês receptor-binding domain, ou domínio de ligação ao receptor), agora os pesquisadores observaram também modificações no domínio NTD (do inglês, amino N-terminal domain).
“O vírus está evoluindo para escapar dos anticorpos, não apenas os voltados para RBD, mas aqueles que são voltados para essa outra região, a NTD”, resume o Dr. Tiago. Este novo trabalho traz evidências de indels em muitas linhagens, entre elas a P.1.
“Tem muitos anticorpos que são gerados para essa região NTD. Então muito provavelmente essas mutações podem conferir ainda mais resistência para o vírus ser neutralizado”, disse o Dr. Felipe Naveca.
O mais preocupante é ainda que o problema não é a alteração de uma variante ou outra. A partir do final de 2020, as mesmas mutações surgiram de forma independente nas variantes de atenção (VOCs) e de interesse (VOIs).
“O fato de que as mesmas exclusões estão sendo selecionadas independentemente umas das outras, sugere que esses domínios são realmente importantes para a neutralização de anticorpos”, disse ao Medscape o Dr. Kevin McCormick, PhD., pesquisador de pós-doutorado em doenças infecciosas na Faculdade de Medicina da University of Pittsburgh.
Mais variantes do que se sabe
O Dr. Felipe Naveca esclarece que estas variantes com indels ainda são pouco frequentes. O sinal de alerta surgiu de um levantamento genômico que identificou 11 sequências de SARS-CoV-2 que abrigam uma combinação variável de alterações (mutações e indels) em amostras de cinco estados brasileiros (Amazonas, Bahia, Maranhão, Paraná e Rondônia). Elas foram observadas precocemente, e os cientistas imaginam que ainda não estão muito disseminadas.
“Mas a detecção serve de alerta e precisamos monitorar a ocorrência delas. É para isso que se faz vigilância genômica”, disse o pesquisador.
É graças à vigilância genômica que se sabe que a epidemia de SARS-CoV-2 no Brasil foi impulsionada principalmente por duas linhagens (B.1.1.28 e B.1.1.33) que provavelmente surgiram em fevereiro de 2020 e dominaram a transmissão na maioria das regiões do país até outubro de 2020. A primeira (B.1.1.28) deu origem a uma VOC, a P.1, e a uma VOI, a P.2. Agora, um novo trabalho dos mesmos autores [2] descreve uma nova possível VOI, a N.9 – esta, originada a partir da linhagem B.1.1.33.
Se estima que a N.9 surgiu em agosto, provavelmente nos estados de São Paulo, Bahia ou Maranhão, aproximadamente ao mesmo tempo em que a P.2 surgia no Rio de Janeiro – esta teria surgido pouco antes, no mês de julho. Detectada em São Paulo em 11 de novembro, a N.9 foi identificada em seguida nas regiões Sul (Santa Catarina), Norte (Amazonas e Pará) e Nordeste (Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Sergipe). Apesar da baixa prevalência nas amostras analisadas, a N.9 já está amplamente dispersa no país. Ela contém a mutação S:E484K, identificada como uma das substituições mais importantes, e que poderia contribuir para a evasão imunológica desta nova variante.
Mas, o que explica este incremento na detecção de novas variantes? “É derivado da maior replicação viral durante um período de transmissão descontrolada, mas não apenas isso. É também pela maior vigilância. Nunca se observou tanto um vírus quanto agora”, disse o Dr. Felipe.
Se a vigilância aumentou no Brasil nos últimos messes, infelizmente ainda está longe do que é feito em países como Reino Unido e Estados Unidos. O Brasil é o país da América Latina que mais estuda suas variantes, reconheceu o pesquisador, mas ainda “precisa melhorar muito”.
Lockdown já!
As variáveis que influenciam na evolução viral são principalmente o número de pessoas infectadas e o tempo que passam infectadas. Os cientistas concordam que, para desacelerar a evolução do vírus, é primordial vacinar rápido e restringir a circulação de pessoas.
“Isto é muito importante para, no futuro, garantir a eficácia das vacinas. Elas não foram planejadas para fazer frente a essa quantidade de mutações”, ressaltou o Dr. Tiago Gräf.
“Defendemos a aplicação das vacinas, e acreditamos que elas vão continuar protegendo contra a doença grave. Mas o vírus está ficando tão diferente do original que serão necessários novos testes para entender quão eficazes elas serão”, afirmou o pesquisador.
“A ciência é muito clara sobre o que precisa ser feito, e na comunidade científica não se observa a divisão vista entre a população leiga e até a comunidade médica. A comunidade científica serve para alertar, mas não toma as decisões. Estamos mostrando que surgiram novas variantes e o perigo delas. Mas a administração pública ignora nossos alertas. A situação que se vê hoje é o resultado disso”, desabafou o Dr. Tiago.
Os Drs. Felipe Naveca e Tiago Gräf não têm conflitos de interesses financeiros a declarar.
Com informações de Roxana Tabakman (colaborou Brenda Goodman) – SARS-CoV-2 está evoluindo para escapar dos anticorpos – Medscape