COLUNA CIENTÍFICA | DR. FABIANO DE ABREU AGRELA RODRIGUES
Pós-PhD em Neurociências | Pós-graduado em Biologia Molecular e Genômica
A neurociência contemporânea vem sendo desafiada por fenômenos que colocam em xeque o determinismo genético clássico. Um dos exemplos mais emblemáticos da última década é o caso de Doug Whitney, portador da mutação PSEN2, reconhecidamente associada ao Alzheimer de início precoce. Aos 75 anos, Whitney permanece cognitivamente intacto, enquanto a maioria de seus familiares apresentou declínio significativo antes dos 60.
A mutação PSEN2, localizada no gene da presenilina-2, promove a formação exacerbada de placas β-amiloides, sendo este o primeiro estágio no modelo patológico tradicional da doença. Espera-se que, na sequência, ocorra o acúmulo progressivo da proteína tau, em especial no lobo temporal medial, núcleo funcional da memória. Contudo, Whitney apresenta um padrão atípico: acúmulo de amiloide sem neurodegeneração por tau. Este paradoxo biológico abre margem para hipóteses que transcendem a expressão direta de genes do tipo “causadores”.
Epistasia: quando genes modulam a expressão uns dos outros
A epistasia é a interação entre genes, na qual um alelo de um gene pode silenciar, modular ou amplificar a expressão fenotípica de outro. Este modelo permite compreender como indivíduos com genótipos de alto risco podem, em determinadas circunstâncias, não expressar o fenótipo esperado. No caso de Whitney, torna-se plausível a presença de genes modificadores protetores que inibem a cascata degenerativa associada à tau.
Estudos em genômica funcional sugerem que a expressão patológica da tau requer a ativação de coadjuvantes epigenéticos, que podem estar inativos ou bloqueados em indivíduos como Whitney. Isso sugere que a mutação PSEN2, isoladamente, não é suficiente para desencadear o processo completo da doença sem um contexto genômico permissivo.
A hipótese térmica: o papel das proteínas de choque térmico
Outro elemento funcional importante identificado no caso é o alto nível de proteínas de choque térmico (Heat Shock Proteins, HSPs) no tecido neural de Whitney. As HSPs são chaperonas moleculares especializadas em preservar a integridade proteica sob estresse celular. Elas auxiliam no dobramento correto, impedem agregações tóxicas e promovem a degradação de proteínas defeituosas.
A especulação científica aqui se ancora em um dado concreto da biografia do paciente: por anos, Whitney trabalhou em ambientes de alta temperatura em casas de máquinas navais, o que pode ter induzido uma resposta adaptativa prolongada de HSPs. A exposição térmica crônica pode ter ampliado a expressão dessas proteínas, promovendo um ambiente celular mais eficiente na contenção da tau mal enovelada, mesmo com a pressão genética para sua formação.
Essa hipótese é consistente com o que já observamos em modelos experimentais: em situações de estresse térmico controlado, há *aumento da expressão de HSP70 e HSP90, proteínas associadas à prevenção do acúmulo patológico da tau. A proteína HSP70, por exemplo, já foi demonstrada em estudos *in vitro como capaz de *interromper a nucleação da tau*, passo inicial para sua agregação neurotóxica.
Implicações terapêuticas e prognóstico científico
A integração entre genética moduladora (epistasia) e regulação proteica térmica (HSPs) oferece um novo paradigma para a compreensão do Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas. O cérebro de Doug Whitney pode não ser uma anomalia estatística, mas uma janela para um modelo de neuroproteção real e replicável.
Ao entender como essas interações genômicas e ambientais podem impedir a expressão fenotípica da doença, caminhamos para uma medicina de precisão não apenas voltada para bloquear danos, mas para potencializar resiliências inatas. A epigenética, os reguladores térmicos e os genes de resposta ao estresse podem ser as chaves para frear um dos maiores desafios neurológicos da era moderna.
Este caso não é sobre sorte genética. É sobre o que ainda não sabemos sobre a capacidade do organismo de escapar ao seu destino aparente — e é por isso que a ciência deve continuar escavando os bastidores do genoma.
Referência científica base:
Bateman, R. J., Llibre-Guerra, J., et al. (2025). Resilience to Alzheimer’s disease in a PSEN2 mutation carrier. Nature Medicine.
Comentário técnico final: A proposta de investigação translacional sobre o papel adaptativo das HSPs no cérebro humano e sua relação com a epistasia funcional é uma das frentes mais promissoras da neurociência atual, com potencial de redefinir tanto prevenção quanto tratamento da Doença de Alzheimer.


