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Possível nova doença causada por parasita nunca antes descrito é identificada por pesquisadores brasileiros

O estudo de um paciente que morreu há 10 anos em Aracaju, Sergipe, revelou um parasita nunca descrito, que pode provocar lesões em humanos e camundongos. A análise genética do agente etiológico foi publicada no periódico Emerging Infectious Diseases.

 

Primeiro caso descrito

“No laboratório do Hospital Universitário de Sergipe, queríamos estudar a participação do parasita na gravidade da leishmaniose visceral ou na falta de resposta ao tratamento. Tínhamos 150 isolados, de 141 pacientes, então iniciamos a pesquisa pelos pacientes mais graves”, relata ao Medscape o Dr. Roque Pacheco de Almeida, do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe (UFS) em entrevista.

Professor titular de medicina, o Dr. Roque é médico com especialização em clínica médica, reumatologia e imunologia, pesquisador e chefe do laboratório de imunologia e biologia molecular do hospital universitário da UFS, com ênfase em pesquisa de doenças tropicais.

“Tudo começou com o estudo de um paciente de 63 anos”. O quadro de perda ponderal acentuada, febre, anemia, leucopenia, diminuição de plaquetas, aumento importante do fígado e do baço levantou a suspeita de leishmaniose visceral, que foi confirmada por microscopia e testes sorológicos. O paciente recidivou quatro meses após o tratamento, depois recidivou duas vezes mais, apesar do tratamento com anfotericina B lipossomal.

“A cada recidiva, isolávamos o parasita porque estávamos preocupados com resistência a medicamentos”, contou o professor.

Na terceira vez, o paciente apresentou lesões cutâneas, mas o aspecto clínico das lesões não era a apresentação clínica clássica, tinham “muitas pápulas bem avermelhadas”, descreveu. O exame histopatológico revelou novamente macrófagos com amastigotas, a morfologia que tem o parasita no ciclo de vida intracelular dentro do hospedeiro mamífero. Como o paciente, imunocompetente e sem neoplasia, tinha desenvolvido uma forma diferente da doença, decidiram estudar a contribuição do parasita na história.

“Não tínhamos ideia de que poderia ser um outro parasita”, relatou o Dr. Roque.

A surpresa aumentou quando infectaram, com material dos isolados, um animal de experimentação (camundongo), e a doença se evidenciou no animal: o parasita do isolado da pele dava lesões na pele, o parasita da medula óssea dava lesão no fígado e no baço do animal.

A pesquisa

O Dr. Roque coletou amostras do parasita daquele paciente e as enviou para o Rio de Janeiro. Na Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), tentaram identificar o parasita pelos métodos tradicionais, comparando-o às espécies conhecidas de Leishmania, mas o micro-organismo não se parecia com a Leishmania infantum. A identidade do parasita ficou a cargo da bióloga e imunologista Dra. Sandra Regina Costa Maruyama, pesquisadora visitante do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo.

O sequenciamento genético foi realizado na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (USP-RP) no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID). Enquanto isso, nos Estados Unidos, outro pesquisador brasileiro, o Dr. José M. Ribeiro, desenvolvia uma nova metodologia para análise de relações evolutivas entre genomas de diferentes espécies exclusivamente para este trabalho, no National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID).

A cepa LVH60 isolada da pele foi submetida a análise de sequenciamento total do genoma. A análise filogenética permitiu descobrir que o parasita tinha se distanciado do clade Leishmania, aproximando-se de outra subfamília de parasitas. A leishmaniose visceral é transmitida apenas pelas fêmeas de flebotomíneos (mosquito palha), mas este parasita apareceu em uma posição filogenética próxima a Crithidia fasciculata, que infecta o pernilongo doméstico (culex) e o Anopheles.

O professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Dr. Carlos Henrique Nery Costa, Ph.D., médico que estuda a leishmaniose há 40 anos. Ele não participou desta pesquisa, mas sequenciou mais de 150 isolados de L. infantum no Piauí e no Maranhão sem notar até agora nenhum sinal de organismos atípicos.

“Há de se ter muito cuidado na interpretação dos resultados antes de atribuir uma doença a um novo organismo. O estudo é interessante, os pesquisadores são todos muito sérios, mas ainda há muito a ser feito antes de se afirmar que há um parasita novo causando uma doença parecida com leishmaniose visceral.”

O Dr. Carlos destacou que é preciso comprovar que o achado não seja contaminação, seja de culturas como no hospedeiro. “Hoje se admite que possa existir uma população de parasitas infectando uma pessoa com leishmaniose visceral, e não um único clone. Então, é possível que um mix com outro organismo similar exista”.

Superado este passo, ele menciona três desafios que devem ser vencidos antes de dizer que são parasitas novos que podem infectar seres humanos e têm relevância clínica.

Primeiro, deve verificar-se a possibilidade biológica de que esse microrganismo possa infectar células humanas. “As espécies de Crithidia e outros tripanossomatídeos monoxêmicos são parasitas do tubo digestivo dos insetos e de outros organismos, e não se sabe que sejam capazes de penetrar as células do hospedeiro vertebrado, que possam sobreviver à temperatura mais elevada destes animais, e ao o estresse de estar dentro dos fagolisossomas dos macrófagos. O gênero Leishmania tem evoluído para ter essa capacidade de sobrevivência ao longo de milhões de anos e não se sabe se estes outros tripanossomatídeos adquiriram esta capacidade.”

Em segundo lugar, se for o caso, mostrar “que o microrganismo poderia infectar seres humanos sem a presença do parasita da leishmaniose visceral”. Finalmente, é preciso saber “qual seria a importância na natureza desta infecção replicada em um camundongo pertencente à linhagem genética BALB/c, altamente suscetível a infecção por Leishmania.”

Há ainda outras condições que, segundo o Dr. Carlos, podem estar influenciando nos resultados, como o fato de o paciente ser idoso e em imunosenescência, ou de a própria leishmaniose visceral ter propiciado imunossupressão e o surgimento de infeções oportunistas.

Gravidade variável

O primeiro caso analisado foi grave e o paciente morreu. Posteriormente, os pesquisadores analisaram outros cinco isolados de pacientes que não responderam ao tratamento, e eles também tinham o genoma desse novo parasita.

“Analisamos outros dois casos de pacientes que também morreram. De fato, os resultados ainda não estão prontos, mas já me comunicaram que muitos dos 150 isolados que tínhamos têm o mesmo parasita”, disse o Dr. Roque, que esclareceu que a maioria dos pacientes com o parasita novo respondeu ao tratamento e se curou.

“Este parasita não causa sempre uma doença grave. A gravidade também pode estar relacionada com o tempo de diagnóstico”, afirmou.

Entre 1990 e 2016, apesar de a incidência da leishmaniose no Brasil ter diminuído, pessoas que contraíram a doença nas regiões Nordeste e Sudeste tenderam a viver menos tempo. Neste período, a incidência de leishmaniose visceral aumentou 52,9%, mas os anos de vida perdidos por morte prematura (YLL, sigla do inglês, Years of Life Lost) duplicaram (108%). A taxa de letalidade registrada nas Américas (7,9%) é considerada alta quando comparada com outros continentes. De acordo com o Ministério da Saúde, a incidência vem aumentando gradativamente no Brasil. Nos últimos anos, a letalidade no país passou de 3,2% (2000) para 8,8% (2017).

A pergunta que surge é: Esta situação estaria relacionada com a presença de um parasita novo?

“Em 2016, a taxa de letalidade no Sergipe era de 20%, a mais alta do nordeste”, lembrou o Dr. Roque. No Paraná, a taxa alcançou 44%, mas, segundo o médico, não é comparável, porque “no Paraná, a leishmaniose visceral é uma doença nova, houve poucos casos, e não se tem experiência no manejo”. O Dr. Roque se pergunta por que a letalidade é tão alta no Sergipe, onde a leishmaniose visceral é uma doença antiga e o estado é pequeno – o menor do Brasil. O que pode haver de diferente?

“Algo está acontecendo, ainda não sabemos o que é. Vemos doenças mais graves, letalidade mais elevada. No Brasil, não temos dados de 2018 ainda, mas de 2016 para 2017 houve um aumento importante na incidência de casos da doença. Antes eram registrados em torno de 3.000 casos de leishmaniose visceral por ano e agora a incidência aumentou para 4.100 casos de um ano para outro.”

O Dr. Roque comentou sobre a existência de dois casos isolados de leishmaniose visceral canina que ainda não tiveram o parasita identificado, e sobre cinco pacientes que foram inicialmente diagnosticados com leishmaniose visceral, mas tinham hemofagocitose.

“Foram casos gravíssimos, um dos pacientes morreu e o outro foi para unidade de terapia intensiva (UTI), ambos com hemofagocitose, com ferritina de 29.000 (µg/L). Não sabemos ainda se eles têm um outro parasita.”

A expansão geográfica e a urbanização da leishmaniose visceral são outro fenômeno notável desde a década de 80. Nos anos 50, a doença era registrada apenas nas áreas rurais do nordeste. Hoje é diagnosticada nas periferias de cidades grandes nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste.

“Ainda não temos explicações convincentes para a expansão da doença e sua urbanização. Existem múltiplas possibilidades, tanto de natureza ecológica, como adaptações genéticas aos seres humanos e ao ambiente”, reconheceu o Dr. Carlos.

Qual é a recomendação para os médicos?

“Se um paciente com leishmaniose visceral com quadro atípico não responder ao tratamento ou apresentar algum sinal de gravidade, recomendo desconfiar deste novo parasita”, disse o Dr. Roque.

“Como ainda não sabemos se outras drogas podem ser mais eficazes, sigamos tratando com anfotericina ou antimonial pentavalente”, propôs o médico. “Mas fiquemos atentos, porque aquele paciente pode precisar de suporte ou ser transferido para a UTI – situações a que não estamos habituados nestes casos. É potencialmente uma doença nova, devemos diagnosticar, tratar adequadamente e continuar pesquisando para descrevê-la melhor.”

“Aguardar, não se preocupar e continuar trabalhando normalmente”, esta foi a contribuição do Dr. Carlos.” Não há nada para se mudar neste momento. Acho que o estudo é importante porque abre uma janela de investigação, mas minha impressão é que ainda é cedo para gerar preocupação entre os médicos.”

Os Drs. Roque Pacheco de Almeida e Carlos Henrique Nery Costa informaram não ter conflitos de interesse. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Intramural Research Program do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (EUA).

 

Com informações de Medscape.

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