Um grupo internacional de pesquisadores conseguiu um feito inédito ao testar o uso do xenônio (Xe), um gás nobre e pouco reativo, sobre a micróglia – pequena célula imune do sistema nervoso central. O projeto foi o primeiro a demonstrar o potencial efeito terapêutico do xenônio em modelos de camundongos com a doença de Alzheimer.
Com participação de pesquisadores brasileiros, o tratamento desenvolvido pelos cientistas induziu a micróglia dos animais a um estado de proteção, reduzindo a atrofia cerebral e a neuroinflamação. Para isto, o grupo projetou uma câmara de inalação de xenônio personalizada para tratar camundongos com Alzheimer e um sensor capaz de detectar com precisão a concentração do gás, cuja medição é difícil e delicada.
“A doença de Alzheimer é atualmente uma das principais causas de demência, contando com apenas um tratamento aprovado. Nosso estudo mostrou que o xenônio atua induzindo um estado que favorece o equilíbrio do sistema nervoso central e auxilia a micróglia no controle da doença”, afirma Wesley Brandão ao Jornal da USP.
Primeiro autor do artigo publicado na revista Science Translational Medicine, Brandão é membro do laboratório de Oleg Butovsky no Brigham and Women’s Hospital da Harvard Medical School. Ele realizou seu doutorado na área de neuroimunologia com o grupo do professor Jean Pierre Peron, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
“O trabalho de Brandão – meu primeiro aluno [orientado] na USP – e colegas demonstrou que o xenônio não só foi capaz de reduzir a ativação das células da micróglia e a diferenciação para um fenótipo mais deletério, mas desviando para um perfil menos inflamatório e mais reparador. Os dados são bastante interessantes e promissores”, comenta Peron.
Brandão conta que um dos obstáculos para o desenvolvimento da pesquisa foi o custo do gás. “Uma das principais fontes de xenônio é a Rússia, e com o início da guerra [com a Ucrânia], os preços aumentaram quase dez vezes em relação ao valor inicial”.
Estado de equilíbrio
Ainda um desafio para a medicina, o Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva, que leva ao declínio cognitivo, deterioração da memória, além de uma série de sintomas neuropsiquiátricos.
As causas do Alzheimer permanecem desconhecidas, mas a progressão da doença é atribuída a um acúmulo anormal de peptídeos beta-amiloides. Encontradas nas camadas gordurosas que envolvem as células, as beta-amiloides são “pegajosas” e se juntam formando as placas que bloqueiam a sinalização entre neurônios no cérebro de quem vive com Alzheimer.
Outro fator de agravamento do Alzheimer vem de alterações na proteína Tau, formando emaranhados que prejudicam as funções dos neurônios e os levam à morte. Este cenário reduz a capacidade da micróglia fagocitar – um dos primeiros mecanismos de defesa do sistema imune em resposta a um agente causador de inflamação.
“Observamos que o xenônio induz um estado intermediário de ativação da micróglia, aumentando sua resposta fagocítica e reduzindo o acúmulo de placas de beta-amiloide. Além disso, o gás modula a resposta inflamatória, evitando uma ativação excessiva que poderia levar à morte neuronal”, explica Marcelo Takahashi.
Marcelo é médico pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e participou da pesquisa enquanto era aluno de graduação, durante intercâmbio de pesquisa no Departamento de Neurologia da Harvard Medical School, no Center for Neurologic Diseases do Brigham and Women’s Hospital.
“Também identificamos que linfócitos T recrutados da periferia auxiliam na modulação da micróglia por meio da liberação da citocina IFNγ (interferon-gama)”, afirma o médico. O interferon-gama é uma molécula muito importante para a imunidade inata e, como mostrou o estudo, pode influenciar o comportamento da micróglia.
Este achado chamou a atenção de Peron. “A dependência da citocina interferon-gama, habitualmente, tem um papel pró-inflamatório, com potencial lesivo. Aqui, a expressão do receptor IFNGR1 foi crucial para que o xenônio exercesse sua função protetora, utilizando a micróglia”, aponta.
Gás medicinal como terapia
O xenônio é um gás nobre já utilizado em pacientes humanos desde os anos 1990, como anestésico e neuroprotetor para tratar lesões cerebrais. Ele consegue ultrapassar a barreira hematoencefálica – uma membrana que dificulta a passagem de substâncias do sangue para o sistema nervoso central.
“No início, a ideia de que o xenônio, um gás nobre, poderia ter potencial no tratamento de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer era inesperada. Ainda que o xenônio demonstrasse propriedades neuroprotetoras, preservando neurônios em condições de hipóxia [falta de oxigênio] e traumatismo cranioencefálico, seus efeitos na modulação de outras células do sistema nervoso central ainda não eram bem compreendidos”, destaca Brandão.
“Um dos paradigmas da pesquisa [sobre] o papel da micróglia na doença de Alzheimer é se há um papel benéfico de um estado mais pró-inflamatório ou menos, ou que haja momentos em que um ou outro estado é crucial para a fisiopatologia da doença: se uma resposta ‘leniente’ é permissiva à fisiopatologia da doença ou uma resposta mais inflamada leva a maior morte celular e dano tecidual. Isto ainda é alvo de investigação”, pondera Takahashi.
O trabalho conseguiu comprovar que o xenônio modulou não apenas a micróglia, mas também astrócitos – células que alimentam os neurônios e que respondem à neurodegeneração em camundongos com Alzheimer.
A análise mostrou ainda uma supressão da expressão de vários genes relacionados a respostas pró-inflamatórias nos astrócitos e na micróglia. A inalação do gás reduziu a atrofia cerebral dos camundongos com Alzheimer, resgatou a espessura da camada do giro do hipocampo [estrutura cerebral com papel na memória] e diminuiu a expressão da proteína GFAP, um biomarcador que indica a proliferação anormal de astrócitos, decorrente da lesão neuronal.
“Observamos que os camundongos tratados com xenônio semanalmente apresentaram menor acúmulo de placas de amiloide e neuritos distróficos [projeções dos neurônios com crescimento alterado] ”, diz Takahashi. O médico explica que os modelos murinos utilizados no estudo começam a desenvolver lesões muito cedo, com poucas semanas de vida, mas geralmente não acumulam tau. Por isso, os cientistas incluíram outro grupo de camundongos com tauopatias.
“Para investigar os efeitos do xenônio nos emaranhados neurofibrilares de tau, tratamos os camundongos com xenônio entre seis e nove meses de vida. Observamos um hipocampo levemente maior nos animais tratados, sugerindo uma menor progressão da neurodegeneração”, explica Takahashi.
Sopro de esperança
Agora, os pesquisadores anunciaram que farão testes clínicos do tratamento com xenônio em voluntários saudáveis ainda este ano. “Já recebemos apoio financeiro do NIH [National Institutes of Health] e aprovação do FDA [Food and Drug Administration] para iniciar um ensaio clínico de Fase 1. Embora estejamos apenas nos primeiros passos, sabemos que enfrentaremos novos desafios, especialmente porque os modelos animais nem sempre refletem os mesmos resultados em humanos”, diz Brandão.
“O trabalho é interessante e um exemplo de pesquisa translacional, ou de tradução, que traz experimentos feitos na bancada de laboratório até às pesquisas clínicas em pessoas”, conclui Takahashi.
O Alzheimer afeta 50 milhões de pessoas em todo o mundo, e deve aumentar para 150 milhões até 2050. “Atualmente, o tratamento com anticorpo antiamiloide apenas retarda modestamente a progressão da doença na demência leve”, destacam os pesquisadores. “Há uma necessidade extrema de tratamentos neuroprotetores que possam minimizar ou atenuar a neurodegeneração e a neuroinflamação observadas nesta doença”, apontam.
A pesquisa foi realizada pelo laboratório do professor Oleg Butovsky, no Departamento de Neurologia da Harvard Medical School, Center for Neurologic Diseases do Brigham and Women’s Hospital, Harvard Medical School, que detém patente para o uso de xenônio no tratamento de doenças neurodegenerativas.
O artigo Inhaled xenon modulates microglia and ameliorates disease in mouse models of amyloidosis and tauopathy está disponível on-line e pode ser lido aqui.
Matéria – Jornal da USP, Texto: Tabita Said