O Papel do Exercício na Homeostase Glicêmica: Evidências da HERITAGE Family Study

A manutenção da homeostase glicêmica é um processo fisiológico complexo, cuja perturbação está no cerne do desenvolvimento do diabetes tipo 2. A literatura já vinha apontando que intervenções baseadas em atividade física promovem melhora da sensibilidade à insulina; no entanto, os resultados variam significativamente entre indivíduos. A HERITAGE Family Study, uma das maiores investigações já realizadas sobre o tema, oferece dados robustos e relevantes que ampliam a compreensão sobre os efeitos do treinamento aeróbico na regulação da glicemia em indivíduos previamente sedentários.

O estudo envolveu 596 participantes (316 mulheres e 280 homens) submetidos a um programa de treinamento em cicloergômetro por 20 semanas. As sessões, realizadas três vezes por semana, evoluíram em intensidade e duração ao longo do tempo, partindo de 55% do VO₂máx até atingir 75%. Os desfechos foram analisados por meio do teste de tolerância à glicose intravenosa (IVGTT), com medidas pré e pós-intervenção. O protocolo permitiu aferições detalhadas de variáveis como sensibilidade à insulina (Si), resposta insulínica aguda à glicose (AIRg), índice de disposição (Di) e efetividade da glicose (Sg) – todos marcadores centrais da dinâmica glicêmica.

A média de aumento da sensibilidade à insulina foi de 10% (P < 0,001), com efeito mais pronunciado em homens do que em mulheres (16% vs. 5%, P = 0,02). Observou-se também um incremento médio de 11% na efetividade da glicose (Sg), representando melhora na capacidade da glicose em promover sua própria captação, independentemente da ação insulínica. Esse ponto é particularmente interessante pois sugere que os benefícios do exercício extrapolam a via insulino-dependente – uma hipótese coerente com mecanismos mediados por transportadores de glicose ativados por contração muscular, como o GLUT-4.

A resposta insulínica aguda à glicose (AIRg) apresentou comportamento bidirecional: aumentou 7% nos indivíduos com pior tolerância basal à glicose e diminuiu 14% nos com melhor perfil glicêmico inicial (P < 0,001). Esse achado denota uma possível adaptação funcional das células beta pancreáticas, ajustando a secreção de insulina conforme a demanda metabólica, o que pode ser interpretado como sinal de melhora da eficiência metabólica.

É fundamental destacar que os efeitos benéficos da intervenção sobre a insulinemia em jejum foram transitórios, com reversão dos ganhos após 72 horas de inatividade. Isso reforça a importância da frequência regular do exercício para manutenção dos benefícios metabólicos, um aspecto muitas vezes negligenciado nas recomendações clínicas. Esse ponto me chamou atenção particularmente porque ecoa resultados de estudos anteriores com atletas e diabéticos tipo 2, que demonstraram reversão rápida dos ganhos glicêmicos após cessação do exercício.

Apesar das melhoras observadas em múltiplas métricas da homeostase glicêmica, a variabilidade interindividual foi marcante. Por exemplo, 42% dos participantes não apresentaram melhora ou tiveram piora na sensibilidade à insulina após o treinamento. Essa heterogeneidade pode estar relacionada a fatores genéticos, idade, composição corporal ou mesmo à precisão do protocolo IVGTT utilizado, que não incluiu agentes farmacológicos para amplificação da resposta, como a insulina exógena ou tolbutamida.

Outro achado de destaque foi a redução do risco de hipoglicemia tardia, evidenciada pela diminuição de 7% na área da glicose abaixo dos níveis de jejum (GABF). Esse dado ganha relevância quando se considera a relação entre hipoglicemia e aumento do apetite, o que pode comprometer estratégias de perda de peso sustentada. O exercício, portanto, pode ajudar a mitigar flutuações glicêmicas extremas, contribuindo para maior estabilidade metabólica.

Conclui-se que, apesar da variabilidade dos resultados, a prática regular de exercício aeróbico promoveu melhorias significativas na homeostase glicêmica, sem a necessidade de perda de peso substancial. Para sustentar esses efeitos, a continuidade da prática é essencial. A HERITAGE Family Study fortalece a base científica para o uso do exercício como intervenção primária na prevenção do diabetes tipo 2 e levanta hipóteses importantes para investigações futuras, especialmente no campo da genômica aplicada à resposta ao exercício.

Referência:

BOULÉ, N. G. et al. Effects of exercise training on glucose homeostasis: the HERITAGE Family Study. Diabetes Care, v. 28, n. 1, p. 108–114, 2005.

 

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