Curiosidade científica – e não o desejo específico de criar uma tecnologia revolucionária – era o que movia o espanhol Francisco Mojica quando ele descobriu o CRISPR, mecanismo bacteriano de defesa contra vírus que daria origem a uma ferramenta de edição genética de infinitas aplicações. O estranhamento diante de sequências de DNA que se repetiam em intervalos regulares no genoma de um microorganismo que ele estudava o fez vasculhar obsessivamente os dados, até entender que isso era um padrão no mundo bacteriano – e portanto, deveria ter uma grande relevância biológica.
A história do CRISPR se destaca pela relativa rapidez em que um conhecimento básico foi levado, por outros cientistas, da bancada do laboratório até aplicações clínicas – incluindo terapias em desenvolvimento para doenças hereditárias e o câncer. Mas este percurso não é exatamente inédito na ciência. Nas mais diversas áreas, da física à microbiologia, perguntas a princípio estimuladas pelo simples desejo de entender a natureza acabam, lá na frente, dando origem a aplicações nunca imaginadas, e por vezes impactantes.
Fazer pesquisa básica com essa motivação – a beleza do conhecimento em si mesmo – mas também buscando encontrar caminhos para um diálogo da universidade com a indústria, pouco avançado no Brasil, é o que move o novo Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) B3, apoiado pela Fapesp e sediado no Instituto de Química (IQ) da USP.
Os três “B” vêm de “Biologia, Bactérias e Bacteriófagos”. Estes últimos, também conhecidos como ‘fagos’, são os vírus que atacam bactérias, alvos do sistema de defesa delas do qual o CRISPRé parte. Inimigos das bactérias que podem se tornar nossos aliados, conforme aprofundamos os entendimento sobre as interações entre os dois.
Aline Maria da Silva, vice-diretora do Cepid B3 – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
O novo Cepid é liderado por um grupo de 21 pesquisadores da USP, Unesp e Unicamp que, ao longo dos anos vem se dedicando a entender como as bactérias funcionam, em nível molecular, e agora se une formalmente. “Queremos aprofundar o entendimento – como essas criaturas funcionam? Que proteínas são necessárias para elas se reproduzirem tão rápido? Como elas se adaptam ao ambiente e respondem a ele, criam um estado de cooperação? Este tipo de pergunta nos interessa e agora temos um enorme potencial para que os projetos andem mais rápido, juntando esforços”, diz Frederico Gueiros Filho, professor do IQ e Coordenador de Inovação do Cepid B3. “É uma chance de ouro para ousar mais, tentar fazer coisas mais originais, atraindo alunos e talentos”, espera ele, tanto pensando em disseminar a beleza da pesquisa básica em microbiologia quanto em desbravar o caminho para uma interface possível com a indústria.
Frederico Gueiros Filho, coordenador de Inovação do Cepid B3 – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
“Se nós conseguirmos iniciar um diálogo com pessoas do setor farmacêutico, que nos digam quais são suas demandas, talvez possamos usar nossos recursos e conhecimentos básicos sobre a biologia das bactérias para buscar soluções juntos. Estamos abertos a esse tipo de colaboração”, diz Chuck Farah, Diretor Responsável do Cepid B3
“Competência técnica a gente tem e acho que estruturados em um Cepid vamos conseguir trabalhar melhor. Chegar [nas etapas finais para] um produto como um antibiótico não é o objetivo, mas aprender a fazer esse caminho e interagir melhor com a indústria, sim”, resume Frederico Gueiros Filho.
Análise do efeito de diferentes antibióticos na bactéria estudada – Laboratório de Biologia Molecular e Genômica de Bactérias e Bacteriófagos – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Armas e escudos
Um dos eixos temáticos do Cepid é buscar entender como as bactérias vivem, se relacionam e se replicam, esmiuçando desde suas vias metabólicas até o modo como expressam seus genes. Em íntima relação com tudo isso, outro braço do Centro de Pesquisas se concentra nos vírus bacteriófagos – inimigos mortais das bactérias. Os dois seres estão em constante luta e evolução, um respondendo às adaptações do outro para aprimorar suas armas de destruição e defesa.
Um campo promissor onde os fagos podem ser aplicados é como antimicrobianos, seja na indústria agropecuária, seja na clínica, em pacientes infectados com bactérias resistentes aos medicamentos disponíveis.
A resistência a antibióticos é uma das maiores ameaças à saúde humana hoje. “Já se atribui a ela a próxima pandemia mais importante que vamos enfrentar”, diz Aline Maria da Silva, professora do IQ e vice-diretora do Cepid, que atua com foco especial nos fagos.
Ana Beatriz de Oliveira, estudante de medicina veterinária e aluna de iniciação científica, avaliando o efeito de diferentes fagos no crescimento de bactérias – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Nos últimos anos, a área de pesquisa renasceu no interesse dos pesquisadores, como alternativa terapêutica. É a chamada fagoterapia – uso de fagos para tratar infecções por bactérias – que ainda é experimental na maior parte do mundo, e portanto complementar ao uso de antibióticos convencionais. “Ainda estão em andamento estudos clínicos clássicos duplo cegos e randomizados [considerados o padrão ouro na medicina], então por uma questão ética os antibióticos não são dispensados”, explica a professora, entusiasta da pesquisa com fagos, ao mesmo tempo em que não quer criar uma falsa expectativa na população, ou anunciá-los como uma panaceia.
Os fagos são um tratamento muito específico, o que é ao mesmo tempo uma vantagem – eles não vão atacar nada no paciente além das bactérias alvo – e uma restrição. “Para cada paciente que apresenta uma bactéria resistente aos antibióticos, precisamos de um fago personalizado. E medicina personalizada custa caro”, explica Aline da Silva. Ela conta que em alguns países do leste europeu os fagos já são usados na prática clínica.
Laboratório de Biologia Molecular e Genômica de Bactérias e Bacteriófagos – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Mas nos outros países, que têm mais restrições porque estudos não são considerados suficientes, já se recorre aos fagos em situações específicas, quando os pacientes não demonstram resposta aos antibióticos disponíveis. Para isso é feito uma cultura, visando saber exatamente a cepa de bactéria presente na infecção, e ela é testada contra os dados já disponíveis em bibliotecas de fagos, às vezes até cedidos entre pesquisadores de diferentes países onde a legislação permite.
No Brasil, o uso dos fagos ainda é uma excepcionalidade, também porque nossas bibliotecas de fagos são ainda mais limitadas. Um dos planos do Cepid B3 é ampliar essa biblioteca. “O que a gente propõe aqui dentro do Cepid é isolar fagos, caracterizá-los, entender que genes estão neles, quais fagos seriam bons ou não para a fagoterapia, como o fago reconhece a bactéria. Alguns aspectos já são conhecidos, outros precisam ser explorados”, diz a cientista.
O isolamento destes vírus é feito a partir da coleta de uma amostra na natureza, um córrego, no solo, em um esgoto. Porque os fagos estão em todo lugar, dentro da gente, inclusive. “Mas os que queremos são que podem matar as bactérias-alvo, que causam doenças”, e esgotos são locais propícios para encontrá-los, como explica a professora.
“Uma vez que isolamos o fago, aí começa uma parte, vamos dizer, tecnicamente mais elaborada, a bioquímica e a biologia molecular mais pesada: sequenciamos, verificamos quais proteínas estão na partícula viral. E aí a gente faz testes de infecção do fago em modelos animais. Porque queremos saber se ele mata a bactéria, além do tubo de ensaio, numa infecção no animal. Testamos a fagoterapia em um modelo de uma larvinha de borboleta chamada Galleria mellonella, que já sabemos que é susceptível à infecção por algumas bactérias que infectam humano e é mais fácil de trabalhar do que em camundongos, por exemplo”, detalha Aline da Silva.
“A ideia é termos centenas ou milhares de bacteriófagos, uma coleção deles, que nós podemos testar contra bactérias de interesse, seja no contexto da pesquisa, ou mesmo médico, caso um infectologista precise de um bacteriófago que mate determinada bactéria”, comenta Chuck Farah.
“Já há lugares no mundo que estão gerando bancos com uma grande gama de fagos para este fim, aqui ainda temos um banco pequeno”, explica o professor.
“Se a gente já tem um fago, e alguém vier aqui e falar, ‘me dê seu fago e eu vou adequá-lo para o uso terapêutico’, a gente também pode fornecer, não tem problema”, diz Aline da Silva. “Mas nós ainda estamos um pouco longe de fazer essa translação”, pondera.
Triagem de alto desempenho
Equipamento de HTS que permite automatizar a pipetagem vai multiplicar velocidade dos testes. Na imagem, operado por Layla Farage Martins – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Na indústria farmacêutica, a High Throughput Screen (HTS) – triagem de alto desempenho ou rendimento – é uma das maneiras como fármacos são procurados, em coleções de milhões de moléculas. “Imagine que alguém descobriu que tem uma enzima que está por trás de um tipo de câncer e quer achar um inibidor dela. Partindo de uma coleção são escolhidas moléculas para ensaios individuais, misturando-as com a enzima, uma por uma, para ver se ela foi inibida ou não”, explica o professor Frederico Gueiros Filho. “Essa é a técnica HTS – e a gente vai ter agora os equipamentos necessários para começar a fazer isso aqui”.
No Cepid a tecnologia será aplicada na busca de inibidores de proteínas bacterianas que os pesquisadores estudam e que talvez possam, no futuro, validar um novo caminho para antibióticos ou outros compostos de interesse biotecnológico.
“Cada um estuda um aspecto do funcionamento das bactérias. Alguns se interessam mais em como elas se dividem, outros estudam como elas formam comunidades, outros investigam os sistemas que elas usam para combater e se defender umas das outras. Agora nós vamos analisar, dentre esses aspectos, se algum parece um bom ‘calcanhar de Aquiles’ que ninguém explorou ainda. E a gente pode tentar buscar uma molécula que possa ser um inibidor do funcionamento da proteína envolvida no processo”, detalha Gueiros Filho.
“Eu estudo como uma bactéria mata outra. Ela tem uma espécie de ‘seringa’ na sua superfície que injeta pequenas toxinas em outra bactéria. Se eu puder entender exatamente como isso funciona, posso tentar gerar uma bactéria que tenha esse sistema para secretar outras moléculas. Um sistema capaz de injetar qualquer coisa dentro de uma bactéria pode ser interessante de várias maneiras”, diz Chuck Farah. “Já o Frederico estuda, no nível molecular, a divisão celular: o processo de formação do septo, um anel no centro da bactéria para separá-la em duas. Então ele quer identificar moléculas que interferem nesse processo para inibir o crescimento [multiplicação] da bactéria”, exemplifica.
“Vamos continuar fazendo pesquisa básica, agora com um novo olhar deste grupo, e tecnologias que a gente não tinha para buscar moléculas que possam afetar o crescimento, a replicação ou a virulência das bactérias”, resume Frederico Gueiros Filho.
“Mas agora a gente vai ter uma robótica que pode fazer isso com mais eficiência, com milhares de moléculas que podem interferir em algum mecanismo da bactéria”.
O Centro de Pesquisa em Biologia de Bactérias e Bacteriófagos (Cepid B3) é uma rede de pesquisa com núcleos sediados nas cidades de São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto e Rio Claro. As atividades foram iniciadas oficialmente em 2023 e o projeto se estende por pelo menos cinco anos. O Cepid B3 está aberto à colaboração com novos pesquisadores interessados.
Mais informações: e-mail cepid-b3@iq.usp.br e comunicacaocepidb3@iq.usp.br
Mídias sociais: instagram.com/cepidb3 e twitter.com/cepidb3
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
Matéria – Jornal USP, Texto: Luiza Caires
Arte: Joyce Tenório*
Imagem – Apoiado pela Fapesp, novo Centro de Pesquisa estuda em detalhes desde como as bactérias se replicam e formam comunidades, até os sistemas que elas usam para combater e se defender umas das outras – e dos vírus – Foto: Frederico Gueiros Filho