Testes e aconselhamento genéticos devem ser mais acessíveis; a cobertura deve incluir indivíduos não afetados pelo câncer quando seus parentes de primeiro e segundo graus cumprirem os critérios, e o monitoramento da predisposição hereditária ao câncer precisa ser feito por profissionais de saúde devidamente capacitados, e não apenas por médicos. Estas são algumas das propostas publicadas junto às diretrizes para diagnóstico e manejo dos pacientes com mutações genéticas associadas à síndrome de predisposição hereditária ao câncer de mama e ovário (HBOC, sigla do inglês, Hereditary Breast And Ovarian), que foram produzidas por um grupo de médicos brasileiros e divulgadas no periódico JCO Global Oncology. A publicação de acesso aberto pertence à American Society of Clinical Oncology (ASCO) e traz informações voltadas para países com recursos limitados para a saúde.
“O objetivo foi consolidar recomendações nessa área de câncer de mama e de ovário hereditários para a população brasileira, porque já existem recomendações internacionais, no entanto, nem todas se aplicam à realidade do pais”, disse a a Dra. Patrícia Ashton-Prolla, médica geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“O próximo passo é buscar o endosso das sociedades médicas.”
Mesmo não sendo estritamente uma diretriz baseada em evidências, o consenso tem o valor de ter sido redigido por especialistas com sólida experiência na área. Além da Dra. Patrícia, o artigo foi assinado por: Dra. Maria Isabel Achatz, coordenadora do Departamento de Oncogenética do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Dra. Maira Caleffi, mastologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, e presidente da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama), Dra. Angélica Nogueira-Rodrigues, oncologista clínica, presidente do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA) e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dr. Rodrigo Guindalini, oncogeneticista da Rede D´Or São Luiz, em Salvador, e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e Dr. Renato Moretti Marques, cirurgião ginecológico do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). Todos eles compõem a Rede Brasileira de Câncer Hereditário (ReBraCH) e foram convocados pela Americas Health Foundation (AHF).
O Dr. Jeffrey Weitzel, médico, professor de oncologia e referência no campo da genômica do câncer leu o trabalho e disse ao portal de notícias Medscape via videoconferência que, este “é um artigo que tem perspectiva local muito mais relevante do ponto de vista global. O modelo da sociedade de cuidar apenas dos doentes não é suficiente. Temos de inovar para chegar aos que ainda não tiveram a doença.”
Exames e tratamentos
Os autores recomendam que pessoas com mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 façam ressonância magnética (RM) da mama e mamografia anualmente partir dos 30 anos de idade, e reforçam que o rastreamento para câncer de ovário não é recomendado. No entanto, em pacientes que recusam salpingo-ooforectomia, a ultrassonografia transvaginal e o CA-125 sérico podem ser considerados, a critério do médico.
Para portadores de mutação no gene BRCA1, os autores apontam que a mastectomia bilateral tem impacto na mortalidade, assim como a mastectomia contralateral para pacientes que já tiveram câncer de mama e que a mastectomia poupadora de mamilos apresenta uma baixa taxa de complicações. O impacto na mortalidade em portadores de mutação no gene BRCA2 é, porém, menos evidente. Estratégias de vigilância após a mastectomia com redução de risco não estão bem estabelecidas e devem ser consideradas caso a caso.
“É necessário explicar os riscos e benefícios em conjunto com a paciente para escolher o melhor momento, mas não existe nenhum substituto à cirurgia no momento”, resumiu a Dra. Patrícia.
“Exames de rastreamento, só se a pessoa se nega a fazer cirurgia. Mas não há demonstração clara da eficácia, muito menos da redução de mortalidade.” Por outro lado, a Dra. Patrícia reconhece que ainda não existem dados robustos sobre os benefícios da mastectomia preventiva, antes do surgimento da doença.
“Os dados não são tão claros e definidos como a cirurgia de retirada de ovário e trompas”, disse. A salpingo-ooforectomia bilateral, no entanto, confere uma redução de risco de 72% a 88% de câncer de ovário e câncer da trompa de falópio. Os especialistas recomendaram, portanto, essa cirurgia para portadoras de mutações no gene BRCA que completaram a gravidez, naquelas entre 35 e 40 anos de idade e que são portadoras de mutações também no BRCA1, e de 40 a 45 anos em portadoras de mutação no BRCA2.”
A revisão apresentada pelos seis pesquisadores brasileiros mostra que, com o uso de tamoxifeno, o risco de câncer de mama pode ser reduzido de 40% a 50% em mulheres com alto risco da doença, embora não necessariamente nas portadoras de variantes patogênicas. Em portadoras de alterações nos genes BRCA os dados de redução de risco por prevenção primária com tamoxifeno são limitados. Os inibidores da poli (ADP-ribose) polimerase (PARP) melhoram a sobrevida livre de progressão (SLP) da doença quando utilizados como terapia de manutenção em pacientes com tumores recorrentes e sensíveis a platina e associados a mutação nos genes BRCA. O olaparibe foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Testes genéticos
As pacientes portadoras de mutação nos genes BRCA1 e BRCA2 têm, respectivamente, 85% e 45% de risco de câncer de mama e 39% e 11% de câncer de ovário ao longo da vida. Mas, os autores observaram que há mutações em outros genes em que o risco é aumentado. Por causa disso, segundo a Dra. Patrícia, é importante oferecer aos pacientes um painel de genes relacionados com a HBOC por sequenciamento de nova geração.
“Ao testar apenas os genes BRCA pode-se perder aproximadamente metade das variantes patogênicas envolvidas no risco, seria um teste incompleto”, resumiu a Dra. Patrícia, ressaltando que “hoje como primeiro teste não se justifica fazer nada que não seja sequenciamento da nova geração. Depois, quando já se conhece a mutação na família, até pode-se usar uma outra metodologia, mas a diferença no preço não é significativa”.
Em relação aos outros genes, ela acrescentou que o conjunto de dados de incidência são tão robustos quanto os disponíveis para BRCA1 e BRCA2 e que os riscos de câncer de mama são idênticos ou até maiores, mesmo que alguns não têm risco aumentado de câncer de ovário.
“Para cada gene sabemos, aproximadamente, qual é o risco ao longo da vida, mas nem todos indicam predisposição a câncer de mama ou de ovário. O profissional precisa saber interpretar os resultados.”
Mutações no gene Tp53 são muito importantes no Brasil, especialmente na região Sul, e uma significativa porcentagem de casos de câncer de mama no país tem ligação com a síndrome de Li-Fraumeni (LFS). Atualmente, o teste genético para a mutação do gene TP53 é oferecido apenas na saúde suplementar para famílias que atendem a certos critérios, o que pode incluir todos os casos de câncer de mama abaixo de 35 anos, independentemente do histórico familiar. A sugestão do grupo então é que seja avaliada a possibilidade de todas as mulheres com câncer de mama na pré-menopausa no Brasil serem testadas para a variante p.R337H. O gerenciamento, defendem os autores, é uma situação de saúde pública que precisa ser discutida.
Os especialistas concluíram que todos os portadores de variante patogênica do gene TP53 no Brasil devem receber vigilância intensiva; a RM da mama deve ser feita anualmente a partir dos 20 anos e a mamografia após os 30 anos. A mastectomia bilateral e a mastectomia contralateral para redução do risco devem ser sugeridas. A RM de corpo inteiro e do cérebro devem ser realizadas anualmente desde o nascimento nos portadores, devido ao alto risco de sarcomas, tumores do sistema nervoso central (SNC), adrenocortical, entre outros.
O sequenciamento completo do genoma e de exomas não apresenta valor agregado e não deve ser recomendado. Por outro lado, os testes genéticos focados no tratamento (TFGT) e o perfil genômico do tumor são atualmente o padrão ouro para escolher as melhores estratégias terapêuticas para alguns tumores como, por exemplo, os carcinomas serosos de ovário.
Cautela e treinamento
“Existe uma pressão muito grande para que qualquer teste seja solicitado para qualquer pessoa”, denunciou a Dra. Patrícia. “Se oferece sem critério, até sem suspeita de câncer hereditário. Isso é muito controverso.”
A Dra. Mayana Zatz, professora titular de genética e diretora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP), que não participou da redação do consenso, compartilha a mesma opinião: “É muito importante testar geneticamente quando há casos de repetição de câncer na família, mas também é muito importante que os pacientes saibam que não achar nenhuma mutação no teste genético não quer dizer que a pessoa esteja livre do câncer. O risco de câncer de mama para qualquer mulher que tenha uma vida longa é de aproximadamente 10%.”
A professora ressaltou que “é preciso muita cautela, já vi pacientes que receberam o laudo do laboratório e os médicos não souberam interpretar. Há uma pressão muito grande para que qualquer médico possa pedir o teste, mas o treinamento é muito importante para saber interpretar os resultados”, disse a Dra. Mayana.
“Às vezes o resultado traz uma variante de significado desconhecido (VUS, do inglês Variant of Unknown Significance) e a conclusão de se é ou não é patogênica se chega depois de muito estudo. E é preciso comparar com os bancos de dados do país.”
A Dra. Mayana oferece um exemplo das dificuldades que a prática clínica ainda apresenta: “Nós fizemos um estudo com idosos saudáveis para obter o perfil genômico da população brasileira. Nessa coorte, uma das pessoas tinha uma mutação que está descrita nos bancos internacionais para câncer de mama como patogênica. Mas era uma senhora de 93 anos que nunca teve câncer na vida. Se essa mesma mutação tivesse sido encontrada em uma mulher de 30 anos, o médico diria “você tem risco altíssimo”, e talvez tivesse indicado uma mastectomia. É preciso avaliar, porque essa mesma mutação descrita nos bancos internacionais como responsável por câncer pode não ser verdade em nossa população.”
“Quem não tem formação específica comete muitos equívocos”, concordou a Dra. Patrícia. “Se uma pessoa que não está adequadamente treinada recebe um laudo e transmite para o paciente de forma incorreta, ela pode tomar decisões irreversíveis. Já vimos acontecer isso muitas vezes.”
Além disso, a diferença em relação à medicina tradicional é que na medicina genética não se deve pensar unicamente no paciente, mas também em seus familiares. “O teste só vai ser custo-efetivo quando eu conseguir testar, além da pessoa que teve o câncer, pelo menos dois ou três familiares.” Ela explicou que isso é assim porque o teste começa na pessoa da família que teve câncer mais cedo, porque há mais chances de encontrar a mutação, se ela existir. Mas, naquela paciente é menos efetivo, porque o câncer já existe. “No momento de encontrar a mutação, se eu conseguir testar duas ou três pessoas ainda sem câncer naquela família e nas que têm a mutação e comprometê-las para estratégias de quimio-prevenção ou cirurgia quando for o momento, vou ser efetiva para essa família. A paciente precisa entender que o laudo do teste genético é importante para ela, mas tem muito menos valor se essa informação não for transmitida para o resto da família.”
Por isso, o documento ressalta que a cobertura deve incluir indivíduos não afetados pelo câncer quando parentes de primeiro e segundo graus cumprem os critérios.
Acesso
O documento foi redigido com o objetivo declarado de ser usado para fazer advocacy. Os autores pretendem minimizar as barreiras. Mesmo sem saberem quantos testes genéticos se fazem no Brasil, eles têm certeza de que este número precisa aumentar.
O Sistema Único de Saúde (SUS) não oferece testes genéticos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) os inseriu nas diretrizes, mas há problemas de acesso. “Alguns convênios não cumprem o estabelecido nas diretrizes, em partes porque exigem que só o médico geneticista faça a solicitação do exame, e nós sabemos que o número de médicos geneticistas tem que ser ampliado”, disse a Dra. Patrícia.
Mas ampliar o número de testes e de geneticistas não bastaria. Os profissionais que sabem fazer os testes, interpretar os resultados e fazer os laudos não são os mesmos que traduzem o conhecimento ultraespecializado para o paciente. Este profissional precisa colocar o significado do resultado na perspectiva do paciente e da família ao longo da sua vida. E a informação dos testes é altamente detalhada e específica, e exige um conhecimento que a grande maioria dos especialistas ainda não tem.
Os autores propõem, portanto, a criação de programas de treinamento específicos para as distintas fases do aconselhamento genético. Definem um primeiro nível de educação básica em genética e educação médica continuada, para permitir o reconhecimento e encaminhamento de pacientes em risco; um segundo nível, de um currículo sobre câncer hereditário nos programas de treinamento em especialidades relacionadas ao tratamento do câncer e, finalmente, os programas de treinamento especializado para todos profissionais de saúde que desejam realizar o gerenciamento de risco de câncer hereditário.
A Dra. Mayana concordou plenamente: “Há uma briga para que só o médico possa fazer o aconselhamento genético. Uma pessoa bem formada pode atuar em aconselhamento genético e isso deve ficar claro na legislação.”
Em 2020, a pandemia pode mudar os números de diagnósticos, mas eram esperados 66.200 novos casos de câncer de mama e 6.600 de ovário. Cerca de 1 entre 10 dos primeiros e um de cada quatro dos segundos estariam associados a alterações genéticas herdadas. Os especialistas recomendaram que todos estes pacientes façam um aconselhamento genético multidisciplinar, envolvendo vários profissionais de saúde com educação profissional continuada e a certificação periódica.
“No Brasil, estamos longe, mas queremos alertar e estimular as pessoas a enfrentar essas barreiras”, concluiu a Dra. Patrícia.
A Dra. Patrícia Ashton-Prolla e a Dra. Mayana Zatz informaram não ter conflitos de interesses relevantes. O Dr Jeffrey Weitzel declarou atuar como porta-voz de AstraZeneca. A American Health Foundation (AHA) financiou o trabalho com aporte da AstraZeneca.
Com informações de “Médicos brasileiros publicam consenso sobre câncer hereditário em mama e ovário – Medscape – 19 de mai de 2020.” (texto de Roxana Tabakman)