O amargor da cerveja, tão apreciado pelos humanos, parece ser impróprio aos microrganismos; pelo menos é o que dizem cientistas que encontraram na flor do lúpulo (Humulus lupulus L.), planta utilizada na fabricação da cerveja, substâncias com ação antiviral. As pesquisas, realizadas com os vírus chikungunya e o oropouche, identificaram um maior potencial contra esses vírus nos acilfloroglucinois, componentes que derivam do metabolismo da planta.
“Esta é a primeira vez que se demonstra uma atividade antiviral promissora do lúpulo contra esses vírus tropicais”, comemora a pesquisadora Tsvetelina Mandova, que começou o trabalho com lúpulo em 2019 em seu pós-doutorado sob orientação do professor Fernando Batista da Costa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP. Os resultados da pesquisa com o chikungunya, primeiros a serem publicados, mostram que todos os constituintes bioativos do lúpulo, com destaque para os alfa e beta ácidos (responsáveis pelo amargor da cerveja), possuem ação no vírus, sem apresentar toxicidade. O mesmo ocorreu com os testes para outro arbovírus, o oropouche, também transmitido por um mosquito que causa epidemias de febre oropouche, principalmente no Norte do País.
Os experimentos foram realizados em células Vero (modelo de células de mamíferos usado em investigações sobre virologia) para simular as células hospedeiras no cultivo de vírus em laboratório. Quanto à atividade contra o vírus da chikungunya, se observou que todos os compostos do lúpulo testados inibem a proliferação da doença, exceto o tratamento com a mistura dos alfa e beta ácidos. O componente com maior poder virucida foi a fração com beta ácido de 125 µg/mL. No caso do vírus oropouche, os ácidos beta também mostraram o mais forte potencial inibitório no ensaio de pós-tratamento.
As hipóteses para o mecanismo de ação do lúpulo contra chikungunya, segundo a pesquisadora, têm base na lipofilicidade (afinidade química com gorduras) e estrutura química dos acilfloroglucinois, o que confere a esses componentes a capacidade de interagir com algumas proteínas do chikungunya. Tsvetelina cita então o exemplo da nsp1, uma proteína associada à membrana do vírus que está envolvida no encapsulamento do genoma e no complexo de replicação viral. “O fato de uma molécula ter afinidade com a membrana pode afetar diferentes proteínas virais e inibir a replicação do vírus, resultando em um efeito antiviral”, afirma.
A outra hipótese, continua Tsvetelina, tem a ver com a proteína quinase C, uma enzima chave nos processos celulares. A pesquisadora conta que já se sabe que moléculas isoladas de algumas plantas são potentes ativadores da proteína quinase C e que, por similaridade, os compostos do lúpulo também poderiam usar esse mesmo caminho contra o vírus.
Surtos e epidemias espalham arboviroses
Justificativas para procurar formas de amenizar os problemas das arboviroses não faltam. Não somente o Brasil, mas toda a América Latina, Índia, Tailândia e Filipinas sofrem com o que é considerado um grande problema de saúde. Estudo recente publicado pelo Lancet afirma que o vírus chikungunya se espalha, causando epidemias que atingem 50 países das Américas e relatam em torno de 3,7 milhões de casos suspeitos e confirmados da doença. “Mesmo que as condições climáticas na Europa não sejam favoráveis à propagação dos principais vetores, os mosquitos Aedes (Ae. aegypti, Ae. albopictus), houve casos na França, Itália e Romênia entre 2007 e 2010”, acentua Tsvetelina.
No caso do oropouche, Amazonas, Pará e Acre vêm enfrentando surtos de febre oropouche neste início de 2024. Transmitida por um mosquito diferente, o Culicoides paraense, popularmente conhecido como maruim, a doença tem sintomas parecidos com a dengue e a chikungunya, como a febre alta, dor de cabeça, dores nas articulações e calafrios. Também em comum, até o momento nenhuma dessas arboviroses possui medicamento específico, apenas o controle dos sintomas.
Componentes encontrados apenas no lúpulo
De nacionalidade búlgara e atuando há tempos na França, Tsvetelina veio para o seu pós-doutorado na USP de Ribeirão Preto para isolar e testar as atividades biológicas dos metabólitos (produtos do metabolismo de um organismo vivo) do lúpulo. O objetivo inicial era “avaliar a atividade neurológica das substâncias do lúpulo em modelos já utilizados para cannabis (ambas espécies são da mesma família), mas, devido à pandemia da covid-19, ajustamos nossos projetos para atividade antiviral”, conta a pesquisadora, enfatizando seu interesse por doenças tropicais.
Para explicar por que testar a planta lúpulo contra um vírus, Tsvetelina menciona as reflexões que fazem “ao buscar pequenas moléculas para potencial terapêutico”. As estratégias dessa escolha, adianta, são: ter uma planta comum ou endêmica na região para uma doença local ou, ao contrário, usar uma planta que, originalmente, não é da mesma região, caso do lúpulo no Brasil.
A segunda estratégia, classificada pela pesquisadora como mais complexa e menos intuitiva, parece ter sido acertada, uma vez que os acilfloroglucinois são compostos comuns a outras plantas, mas os que apresentaram melhores resultados (os tipos alfa e beta ácidos) são encontrados apenas no lúpulo.
Os estudos estão sendo conduzidos por um grupo de pesquisadores brasileiros associados à colega Tsvetelina, que atua na empresa francesa Gilson. Entre os laboratórios brasileiros, além da FCFRP, estão a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP; a Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP); o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), Campinas; a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal e a Universidade Federal de Jataí, Goiás.
Tsvetelina lembra que o desenvolvimento de vacinas ou as abordagens de modificação da população de mosquitos (exemplo da bactéria Wolbachia, que infecta insetos) são difíceis de implementar por várias razões. É por isso que “há sempre a necessidade de novos tratamentos”, complementa.
Apesar de achar promissores os resultados obtidos até o momento, a pesquisadora lembra que “para que uma molécula que exerce uma atividade biológica, neste caso antiviral, se torne um medicamento, o caminho é longo e repleto de muitos obstáculos a serem superados”. O que vale dizer é que as pesquisas devem continuar.
Mais informações: e-mail tmandova@gilson.com, com Tsvetelina Mandova
Matéria – Jornal USP, Texto: Rita Stella
Arte: Simone Gomes
Imagem – Resultados até o momento são promissores, mas pesquisadora ressalta que estudos devem continuar: “para que se torne um medicamento, o caminho é longo e repleto de muitos obstáculos” – Foto: Reprodução/Pixabay