Estudos identificam genes associados à intolerância permanente ao glúten e testam vacina como imunoterapia
Entre as inúmeras possibilidades da biotecnologia, está a capacidade de inserir ou retirar, do genoma de organismos, genes responsáveis por determinadas características. No caso da doença celíaca, reação imunológica desenvolvida por pessoas com sensibilidade permanente ao glúten, estudos já conseguiram identificar quais partes dessa proteína (encontrada em cereais como trigo, centeio e cevada) causam irritação e, agora, por meio da biotecnologia, cientistas tentam subtrair do trigo as partes que provocam a doença.
Os esforços da ciência para criar variedades da planta “amigáveis” aos celíacos por meio de modificação genética buscam resolver um problema de saúde que afeta diariamente 1% da população mundial, ou 76 milhões de pessoas. Estima-se, porém, que mais de 80% dos portadores estejam sem diagnóstico só nos Estados Unidos. Do total de casos, 90% são provocados por uma mutação no gene HLA-DQ2 e os outros 10%, no gene HLA-DQ8, ambos envolvidos na regulação imune. “É uma doença sem cura, e o tratamento consiste em retirar da dieta todos os alimentos que contenham glúten. Além disso, por ser um problema genético, recomenda-se que todos os parentes em primeiro grau do paciente diagnosticado também sejam investigados, apresentando ou não sintomas”, afirma o biólogo e doutor em genética de microrganismos e membro do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB) Airton Vialta.
Uma pesquisa sobre o tema tem sido conduzida pelo Instituto de Agricultura Sustentável em Córdoba, na Espanha, com publicações em maio de 2014 no “Journal of Cereal Science” e em setembro de 2017 no “Plant Biotechnology Journal”, já com novos resultados e a parceria da Universidade de Sevilha, também na Espanha, e da Universidade de Minnesota, nos EUA. O estudo concentra-se no uso da engenharia genética para reduzir os componentes do glúten que podem ser tóxicos para o sistema de defesa do organismo. Os autores do trabalho, liderados pelo cientista Francisco Barro, investigaram formas de “silenciar” os genes de codificação de proteínas que são responsáveis por desencadear respostas imunes adversas em pacientes com doença celíaca.
As conclusões apontam que a modificação genética – em especial, uma tecnologia chamada interferência por RNA (RNAi), que muda a expressão dos genes nas células sem alterar seu DNA – é a grande promessa para reduzir ou silenciar as proteínas do glúten. Essa técnica permite o desenvolvimento de cepas de trigo e outros cereais sem a proteína, ao ajustar as partes do glúten (especificamente, uma proteína chamada gliadina) que são tóxicas a indivíduos com intolerância permanente. Ao todo, 35 de 45 genes já foram geneticamente modificados (GM) em uma variedade selvagem de trigo, com uma queda de 85% na reação imune. Esses outros dez genes ainda precisam ser desativados antes que a cepa GM esteja pronta para testes, mas ela já demonstrou ser capaz de produzir pães com baixo teor de glúten.
“Apesar de serem feitos, atualmente, ensaios clínicos com trigo GM envolvendo até 20 pessoas com doença celíaca no México e na Espanha, muitos testes ainda serão necessários antes que essa linhagem seja liberada para plantio comercial. O glúten é responsável pelas principais características sensoriais na panificação. Por isso, sua eliminação ou substituição nos produtos é um grande desafio tecnológico para a indústria”, explica Vialta.
Outro estudo, feito por pesquisadores do Departamento de Biologia e Biotecnologia da Universidade de Pavia, na Itália, e publicado na edição de fevereiro do “International Journal of Molecular Sciences”, identificou genes e reguladores gênicos (miRNAs) associados à doença celíaca em crianças. Os resultados evidenciaram novos marcadores moleculares que podem ser úteis para aumentar a precisão do diagnóstico dessa condição autoimune, cujos como sintomas clássicos são: “diarreia ou prisão de ventre crônica, dor abdominal, inchaço na barriga, danos à parede intestinal, falta de apetite e, como consequência, anemia, perda de peso e desnutrição”, enumera o doutor em ciências dos alimentos e conselheiro do CIB Flavio Finardi.
Novas frentes de estudo
Entre as pesquisas mais modernas realizadas hoje sobre doença celíaca, está uma vacina desenvolvida por uma empresa de biotecnologia com sede em Cambridge, Massachusetts (EUA). A imunização apresentou resultados promissores em sua fase I de testes clínicos, realizados com 38 indivíduos celíacos em Melbourne, na Austrália. A próxima etapa do estudo deve ter início nos próximos meses e pretende verificar se a dose poderá ser usada, junto com uma dieta livre de glúten, para proteger pacientes quando eles se expuserem inadvertidamente à proteína do trigo.
Outras pesquisas relacionadas à doença celíaca estão indo pela linha da imunoterapia. Em 2015, uma empresa suíça de biotecnologia se uniu a uma farmacêutica japonesa para desenvolver um tratamento destinado a pacientes celíacos e com diabetes tipo 1, outra doença autoimune. Em abordagem similar, uma companhia farmacêutica francesa trabalha atualmente em parceria com uma empresa de biotecnologia norte-americana para conhecer melhor os mecanismos biológicos envolvidos na sensibilidade ao trigo e as possíveis soluções para a doença.
“No médio prazo, há expectativa de avanços no tratamento da doença celíaca. Ferramentas de edição genética [que edita o DNA] têm potencial para desenvolver novas alternativas de produtos a essa população”, afirma Finardi.
BOX 1: DIFERENÇA ENTRE DOENÇA CELÍACA, INTOLERÂNCIA AO GLÚTEN E ALERGIA AO TRIGO
Problema de saúde |
O que é? |
Sintomas
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Doença celíaca |
Uma resposta autoimune e permanente ao glúten (proteína encontrada no trigo, centeio e cevada) quando ele entra em contato com o intestino. Ao consumir cereais, massas, pizzas, bolos, pães, biscoitos, alguns doces, cerveja, uísque e vodca, o organismo tem uma resposta imune que danifica o revestimento do intestino delgado, atrofiando suas vilosidades e inibindo a capacidade de absorver os nutrientes dos alimentos.
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Diarreia ou prisão de ventre crônica, dor abdominal, inchaço na barriga, danos à parede intestinal, anemia, falta de apetite, perda de peso, desnutrição, atraso no crescimento, fadiga, cãibras e irritabilidade. Em alguns casos, pode haver também osteoporose, dores de cabeça e nas articulações, depressão e até abortos de repetição.
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Intolerância (ou sensibilidade) ao glúten |
Uma forma branda de rejeição a essa proteína, pelo fato de o organismo ter dificuldade para digeri-la. O consumo desencadeia sintomas clínicos, mas o sistema imunológico não produz anticorpos para combater a presença do glúten.
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Desconforto abdominal, diarreia ou prisão de ventre.
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Alergia ao trigo |
Uma alergia alimentar, imediata e de curto prazo, a unidades proteicas contidas no glúten, como gliadina e glutenina. Isso não significa, porém, que o corpo terá a mesma resposta a outros cereais que contêm glúten.
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Reações na pele (como urticária) e nas vias respiratórias (rinite ou asma). Em casos graves, pode provocar choque anafilático.
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BOX 2: QUEM É O TRIGO NA FILA DO PÃO?
Origem |
O ancestral do trigo moderno foi cultivado pela primeira vez há cerca de 10 mil anos, em países do Oriente Médio como Síria, Jordânia, Iraque e Turquia (parte asiática). Foram encontrados grãos também em tumbas egípcias, e é atribuído a esse povo o uso do pão branco, de massa fermentada. Além disso, fenícios, árabes, hindus e cristãos já usavam trigo na alimentação.
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Chegada ao Brasil
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Durante o período colonial. |
Variedades e cruzamentos
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Existem atualmente mais de 25 mil variedades de trigo, que diferem muito das linhagens selvagens. A gramínea primitiva não continha glúten, mas era pouco produtiva e ruim para fazer pães, pois é essa proteína que deixa a massa fofa, alta e bonita. Há milhares de anos, graças ao cruzamento natural do trigo (Triticum spp.) com outra gramínea, a Aegilops tauschii, a planta adquiriu a presença do glúten. As variedades mais antigas também superavam um metro de altura, contra 40 centímetros hoje.
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Produção
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O trigo é a segunda maior cultura de cereais do mundo, atrás apenas do milho e à frente do arroz. Por ano, são produzidas globalmente mais de 700 milhões de toneladas desse grão. Além de ser usado como farinha na dieta humana e na fabricação de cervejas e outras bebidas, serve como estabilizante e espessante de alimentos (para dar consistência) e ração animal.
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Fonte: Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB)