Um estudo com pessoas que se recuperaram da covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019) mostrou que a quantidade de anticorpos gerados varia amplamente, assim como a eficácia deles.
“As pessoas podem responder ao vírus, mas geralmente não estão fazendo respostas muito boas. Depois de ser infectada, a maioria das pessoas apresenta baixo nível de anticorpos e, em particular, de anticorpos neutralizantes – que são os que realmente importam”, disse ao Medscape o médico e pesquisador brasileiro Dr. Michel C. Nussenzweig, líder do Laboratório de Imunologia Molecular da Rockefeller University, nos Estados Unidos.
“Apesar disso, muitos indivíduos podem fazer anticorpos neutralizantes como uma fração menor do total que está sendo produzido. Clonamos os anticorpos dessas pessoas e encontramos anticorpos muito potentes. Eles são raros, mas existem.”
A descoberta foi publicada no periódico Nature.
“É um trabalho excelente, que mostra o repertório de respostas induzidas pelo SARS-CoV-2 (sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), vírus que causa a covid-19″, disse ao portal de notícias Medscape o Dr. Almicar Tanuri, médico virologista, professor e chefe do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A equipe liderada pelo Dr. Almicar está desenvolvendo uma pesquisa semelhante.
“Vamos ver se bate, estamos curiosos para saber se vamos ter o mesmo resultado com pacientes do Rio de Janeiro.”
Diversidade plasmática
O laboratório do Dr. Michel estuda os aspectos moleculares das respostas inatas e adaptativas do sistema imunitário usando uma combinação de bioquímica, biologia molecular e genética. Com a pandemia, o cientista de 65 anos que passou a maior parte da sua vida nos Estados Unidos e respondeu a entrevista em inglês, redirecionou parte do seu trabalho para a resposta ao SARS-CoV-2.
O plasma dos 149 voluntários foi coletado em abril e na primeira semana de maio. Os pacientes recuperados tinham reportado sintomas de covid-19 em média 39 dias antes (17-67). Os sintomas perduraram cerca de 12 dias (0-35), e os mais frequentes foram: febre (83,9%), fadiga (71,1%), tosse (62,4%) e mialgia (61,7%).
Um terço dos pacientes não apresentou boa resposta imunitária; e 33% tiveram títulos de neutralização < 1:50. A maioria (79%) produziu uma quantidade de imunoglobulina G (IgG) contra a proteína S da espícula do vírus considerada razoável (até 1:1.000). Mas, 1% produziu quantidades muito altas de anticorpos neutralizantes, com dois indivíduos alcançando aproximadamente 1:5.000.
O interesse da equipe de pesquisadores, porém, não era conhecer detalhadamente a população curada, a fim de estabelecer passaportes de imunidade ou algo semelhante. O plano era encontrar os chamados neutralizadores de elite, a minoria de pacientes que venceu a infecção tão excepcionalmente que seus anticorpos podem vir a ser medicamentos. A mesma abordagem tem mostrado grande potencial contra outros vírus, incluindo o HIV.
No entanto, os pesquisadores encontraram em todos os indivíduos testados anticorpos raros, específicos para uma região da espícula do vírus que o SARS-CoV-2 usa para entrar nas células. Estes anticorpos, que se ligam à região chamada RBD (sigla do inglês, Receptor-Binding Domain), foram capazes de inibir o vírus, mesmo quando presentes em quantidades extremamente baixas.
Ou seja, a maioria dos indivíduos que tinha se recuperado tinha gerado pelo menos alguns anticorpos intrinsecamente capazes de neutralizar o SARS-CoV-2. O sequenciamento mostrou que esses anticorpos – provenientes de diferentes indivíduos – estavam intimamente relacionados com essa neutralização. Eram anticorpos monoclonais, de células B com memória específica para RBD. E embora existam muitos epítopos antigênicos na proteína da espícula, a maioria dos anticorpos neutralizantes eram direcionados para poucos epítopos nessa proteína.
Estes anticorpos neutralizantes se ligam a pelo menos três locais distintos na subunidade RBD, o que indicaria uma resposta imunológica convergente. A resposta para neutralizar o vírus seria, portanto, muito homogênea. “Definir no receptor do vírus epítopos suscetíveis à neutralização significa que esses anticorpos podem potencialmente ser usados para terapias passivas”, disse o Dr. Michel.
Testes clínicos em humanos?
“Os anticorpos monoclonais neutralizantes de grande potência são raros. O trabalho de garimpar isso é muito importante. Caso se consiga isolar esse anticorpo para injetar nas pessoas com a doença ele poderia eliminar as partículas virais do pulmão, da circulação, e de outros órgãos. O Dr. Michel demostra que a terapia com monoclonal é uma terapia viável”, afirmou o Dr. Almicar.
Os próprios autores alertam, no entanto, que a imunidade tem duas caras. Anticorpos monoclonais humanos com atividade neutralizante têm se mostrado efetivos, mas em tese, podem provocar o fenômeno ADE (sigla do inglês, Antibody Dependent Enhancement) no qual o anticorpo, contrariamente ao esperado, ajuda o patógeno a entrar na célula.
A ciência sempre faz mais perguntas do que responde. “Sabemos que muita gente vai acabar a epidemia sem ter o anticorpo neutralizante detectado. Sabemos que em Nova York apenas 20% da população tem anticorpos contra o SARS-CoV-2, mas 80% da população não tem. Por quê? Não sabemos”, admitiu o Dr. Almicar.
Ele aponta outras questões cruciais ainda sem resposta: “Não sabemos se os indivíduos que não têm anticorpos são suscetíveis ao vírus ou não. E, caso não sejam suscetíveis, se isso ocorre porque eles podem ter imunidade inata. Algumas das pessoas que não têm anticorpos depois da epidemia têm uma resposta celular, e não humoral. Será que isso explica por que um vírus ao qual toda a população foi exposta infecte apenas alguns, que fizeram anticorpos e ficaram ou não doentes, mas não outros?”
Quando indagado sobre se este novo conhecimento acerca dos anticorpos monoclonais humanos raros, mas potentes, serviria para explicar a aparente “proteção” observada nas crianças?
“Mais uma boa pergunta, ninguém fez o estudo com crianças”, respondeu o pesquisador.
Na imunologia do SARS-CoV-2 a lista das perguntas ainda sem resposta é longa.
A The Rockefeller University apresentou um pedido provisional de patente com o Prof. Michel Nussensweig como um dos inventores. O Dr. Almicar informou não ter conflitos de interesses.
Com informações de “Boas e más notícias sobre os pacientes recuperados da covid-19 – Medscape – 30 de junho de 2020”.