A Agressividade em Crianças Autistas Não Verbais: Uma Perspectiva Neurobiológica e Estratégias de Intervenção

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento que se caracteriza por déficits persistentes na comunicação e interação social, além de padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades, com níveis de suporte que variam de 1 a 3, indicando a necessidade de diferentes graus de assistência. Crianças autistas não verbais, especialmente aquelas classificadas nos níveis de suporte 2 e 3, frequentemente apresentam comportamentos desafiadores, incluindo agressividade, que podem ser complexos de compreender e manejar. A agressividade, que se manifesta tanto como autoagressão quanto como agressão dirigida a outros, geralmente emerge como resposta a frustrações, alterações na rotina, sobrecarga sensorial ou demandas sociais e comunicativas.

Uma perspectiva neurobiológica propõe que essas manifestações agressivas podem ser comparadas aos mecanismos inatos de luta ou fuga do cérebro reptiliano, a parte mais primitiva do cérebro humano. De acordo com o conceito do “cérebro trino” de Paul MacLean, o cérebro reptiliano é responsável por funções básicas de sobrevivência e respostas instintivas de autoproteção, como luta, fuga ou congelamento. Em situações de estresse ou percepção de ameaça, mesmo que não seja real, o cérebro reptiliano pode disparar essas respostas fisiológicas automáticas, mediadas pelo sistema nervoso autônomo, com a liberação de hormônios como adrenalina e cortisol. Em indivíduos neurotípicos, o neocórtex, a parte mais evoluída do cérebro, modula e inibe essas respostas primitivas, permitindo uma análise racional e a escolha de respostas mais adaptativas.

No contexto do TEA, particularmente em crianças não verbais com níveis de suporte 2 e 3, a ausência de comunicação verbal funcional e os desafios no processamento sensorial e na regulação emocional podem levar esses indivíduos a recorrer a respostas primitivas de autoproteção. A agressividade, nesse cenário, não é necessariamente uma intenção de causar dano, mas uma tentativa desesperada de comunicação ou autoproteção contra o que é percebido como uma ameaça ou uma situação insuportável, em um contexto de recursos limitados para lidar com o estresse. Isso ocorre porque a modulação do neocórtex sobre as respostas instintivas pode estar comprometida ou subdesenvolvida no TEA.

A dificuldade de comunicação é um fator crucial, pois a incapacidade de expressar frustrações, dor, desconforto ou desejos pode levar ao acúmulo de tensão, resultando em comportamentos agressivos. A hipersensibilidade sensorial é outro contribuinte significativo; estímulos como sons altos, luzes intensas ou certas texturas podem ser avassaladores e interpretados como ameaças, ativando uma resposta de estresse extremo. Além disso, a rigidez de rotina e a intolerância a mudanças são comuns em indivíduos com TEA, e alterações inesperadas podem gerar ansiedade intensa, culminando em agressividade como uma tentativa de restaurar o controle ou expressar angústia. A dificuldade na regulação emocional também é um fator, pois a incapacidade de reconhecer, compreender e gerenciar emoções intensas pode rapidamente escalar para comportamentos desregulados, incluindo agressão, na ausência de estratégias de enfrentamento adaptativas.

A percepção de ameaças em crianças com TEA pode ser amplificada devido à hipersensibilidade sensorial e à rigidez cognitiva, fazendo com que estímulos neutros para neurotípicos sejam interpretados como perigos significativos. As funções executivas, que incluem flexibilidade cognitiva e inibição de respostas impulsivas, são frequentemente atípicas no TEA, o que pode significar que o “freio” cortical sobre as respostas de luta ou fuga é menos eficaz. A falta de rotas comunicativas alternativas para crianças não verbais significa que, quando o cérebro reptiliano dispara a resposta de luta, a ativação fisiológica acumulada se manifesta fisicamente através da agressão, tornando-se a única “voz” disponível para a criança em seu estado de emergência. Quando uma criança autista não verbal não consegue o que quer, isso pode ser interpretado como uma perda de controle ou uma frustração inprocessável, resultando na resposta primitiva de luta (agressão) como uma tentativa de forçar o ambiente a ceder ou remover o estímulo aversivo.

Compreender a agressividade nesse contexto leva a implicações profundas para as estratégias de intervenção. O foco deve ser na prevenção de gatilhos, identificando e minimizando estímulos sensoriais, ambientais e sociais que podem ativar a resposta de luta ou fuga, incluindo a criação de ambientes previsíveis e sensorialmente amigáveis. A Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), como o Picture Exchange Communication System (PECS) ou dispositivos de alta tecnologia, pode fornecer à criança uma “voz” para expressar suas necessidades e frustrações, diminuindo a necessidade de agressão. O ensino de habilidades de autorregulação, como técnicas de respiração e acesso a espaços calmos, é crucial para ajudar a criança a gerenciar a sobrecarga sensorial e emocional. Intervenções baseadas no trauma, que veem o comportamento agressivo como uma resposta a um estado de estresse extremo e sensação de ameaça, promovem uma abordagem mais empática e menos punitiva. Por fim, a colaboração multiprofissional entre pais, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos e educadores é essencial para criar um plano de suporte coeso e abrangente.

Ao reconhecer que essas crianças podem estar em um estado crônico de “alerta” devido às suas particularidades neurobiológicas e à falta de recursos para expressar suas necessidades, o foco das intervenções pode mudar de uma perspectiva punitiva para uma abordagem mais preventiva e capacitadora. O objetivo é equipar a criança com ferramentas mais adaptativas para navegar em seu mundo, promovendo sua qualidade de vida e bem-estar, e não apenas suprimir o comportamento agressivo.

Referência:

Pereira da Silva, A., & Agrela Rodrigues, F. (2025). Luta ou Fuga no Espectro Autista: Uma Análise Comparativa dos Mecanismos Primitivos do Cérebro Reptiliano e a Agressividade em Crianças Não Verbais de Níveis de Suporte 2 e 3. Revista Internacional de Ciencias Sociales, 4(2), e726. https://doi.org/10.57188/RICSO.2025.726

 

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