A Antártida é conhecida como o continente mais inóspito da Terra, com frio intenso e ar muito seco. Mas veio de lá uma espécie de alga marinha, a Phaeurus antarcticus, que contém propriedades para tratar a neosporose, infecção que ataca bovinos e cães, e a leishmaniose, doença negligenciada que vitima milhares de pessoas em regiões pobres do planeta.
A descoberta saiu de estudos conduzidos por Gustavo Souza dos Santos durante seu doutorado, sob orientação da professora Hosana Maria Debonsi, no Laboratório de Química Orgânica do Ambiente Marinho (NPPNS) da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP. Os resultados, publicados na Chemistry & Biodiversity, revelam a capacidade antibacteriana e antiparasitária da espécie que apenas é encontrada na Península Antártica.
A equipe liderada pela professora Hosana estuda as substâncias que compõem fungos e algas coletadas durante uma expedição ao continente gelado realizada em 2015. Como a sobrevivência dessas algas e de outros organismos envolve habilidades únicas ainda pouco estudadas, os pesquisadores buscam por “substâncias que possam servir como drug leads, modelos para o desenvolvimento de novos antibióticos e antiparasitários”, informa Santos.
As moléculas encontradas nessas espécies podem servir de modelo para inspirar estruturas de novos medicamentos e, segundo o pesquisador, a descoberta feita agora deve contribuir para a formulação de drogas para duas doenças com tratamento ainda limitado. A toxicidade das medicações atuais para Leishmania e a ausência de um medicamento aprovado para Neospora caninum contribuem para o maior interesse por novos compostos antimicrobianos naturais.
Atividades antimicrobianas e novos medicamentos
Essas estruturas naturais, conta Santos, são modelos atrativos para a criação de novos medicamentos. Em seu estudo, o pesquisador encontrou propriedades antiparasitárias de alta eficácia contra a espécie Leishmania amazonensis, um dos principais protozoários envolvidos nos casos de leishmaniose no Brasil.
A leishmaniose é uma doença transmitida pelo mosquito-palha e provoca úlceras na pele e nas mucosas, principalmente no nariz, boca e garganta, infectando humanos e animais. Os testes frente ao parasita Leishmania amazonensis foram feitos em parceria com a professora Márcia Aparecida Silva Graminha, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) de Araraquara.
Também foram encontrados compostos produzidos pelas algas efetivos contra o protozoário Neospora caninum, causador de uma doença que afeta principalmente o gado leiteiro. De acordo com a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, o sintoma mais evidente é a síndrome abortiva nesses animais, o que pode gerar prejuízos econômicos na agropecuária. Os testes com o parasita foram realizados com a parceria da professora Ana Patrícia Yatsuda Natsui, da FCFRP.
Além de antiparasitária, as algas marinhas da Antártida revelaram propriedades antibacterianas com destaque para a ação contra a bactéria Staphylococcus aureus. O microrganismo está presente na pele humana e, normalmente, não causa infecções graves. Porém, quando afetam pessoas com baixa imunidade podem ser letais. Santos lembra que o estafilococo é uma das bactérias com os maiores índices de resistência aos antibióticos. Os testes antibacterianos foram realizados em parceria com a professora Niege Araçari Jacometti Cardoso Furtado, também da FCFRP.
Estratégia de conservação para um ecossistema já fragilizado
Pesquisadores participaram de excursão à Antártida para colher algas marinhas nativas – Foto: Cedida pelo pesquisador
Para ampliar o conhecimento da diversidade química da Antártida, os pesquisadores utilizaram técnicas para manter a sustentabilidade de um ecossistema já bastante afetado pelas mudanças climáticas. O grupo coletou poucas amostras de algas, minimizando danos ambientais. “Se a gente perde essa biodiversidade sem conhecer a composição química dela, a gente pode estar perdendo a informação que poderia levar ao desenvolvimento de um novo fármaco”, argumenta Souza.
Trata-se de “uma estratégia de conservação, porque nós estamos conhecendo essa espécie e identificando possíveis aplicações biotecnológicas, o que incentiva a continuação de pesquisa de novas moléculas em ambientes extremos, que são tão pouco explorados”, acrescenta o pesquisador. Ele informa que, em laboratório, utilizaram cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas (técnica que fornece informações sobre cada composto) e análises estatísticas multivariadas (avaliação do comportamento de diversas variáveis simultaneamente).
A espectrometria de massas permite identificar as substâncias presentes nas amostras da alga, enquanto as análises multivariadas conseguem avaliar grupos de amostras com base nas características que elas possuem. “No nosso caso, a gente comparou amostras que eram ativas, ou seja, que foram capazes de inibir o crescimento das bactérias e dos parasitas, com amostras inativas, que não possuíam essa bioatividade”. Dessa forma, foi possível identificar os compostos presentes na alga e relacioná-los com as atividades farmacológicas.
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU
Todo o estudo foi orientado por alguns dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esses objetivos fazem parte de uma iniciativa para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade.
Santos diz que sua pesquisa está alinhada com o ODS 3 (de saúde e bem-estar, que visa assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades), já que identificou novos modelos para o desenvolvimento de medicamentos para doenças parasitárias.
A maioria dessas doenças, lembra o pesquisador, “são consideradas negligenciadas, ou seja, a indústria farmacêutica pesquisa menos essas doenças”. E a maior parte desses medicamentos é utilizada pelas populações de países em desenvolvimento. “Então, o retorno financeiro da indústria vai ser menor”, completa o pesquisador.
Para Santos, o ODS 9 (de indústria, inovação e infraestrutura, que tem como objetivo construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação) também é abarcado, já que utilizou técnicas avançadas, acelerando a descoberta de compostos e apontando um caminho para possível aplicação em biotecnologia e nas indústrias farmacêuticas.
Por fim, o pesquisador ressalta a exploração sustentável da biodiversidade antártica. Com a escolha de técnicas que requerem uma menor quantidade de amostras, foi possível utilizar o mínimo possível de algas em respeito ao ecossistema da região.
Mais informações: gustavosantos@alumni.usp.br, com o pesquisador Gustavo Souza dos Santos, ou hosana@fcfrp.usp.br, com a professora Hosana Maria Debonsi
Matéria – Jornal da USP
Imagem – Pesquisadores descobrem propriedades antibacterianas em algas nativas da Antártida – Foto: Reprodução PRPG-USP/Youtube