Conflitos armados contemporâneos, cada vez mais prolongados e urbanizados, exacerbam suas consequências na saúde da população, transformando-se em crises humanitárias entrelaçadas com emergências de saúde pública crescentes. Estima-se que mais de 740.000 mortes anuais resultem diretamente da violência relacionada a conflitos. No entanto, esse número não reflete a totalidade da mortalidade induzida pela guerra, pois exclui óbitos decorrentes de efeitos secundários, como doenças não tratadas, fome e destruição ambiental.
Os conflitos armados prejudicam a infraestrutura de saúde, causam o deslocamento de milhões de pessoas e geram crises de saúde pública de longo prazo. Em diversos contextos, como na Síria, observou-se a desestruturação sistemática de instalações médicas, forçando profissionais de saúde a atuarem sob cerco e com recursos severamente limitados. No Afeganistão, décadas de conflito resultaram em um sistema de saúde frágil, com elevadas taxas de mortalidade materna e infantil. Mais recentemente, em Gaza, bombardeios e bloqueios persistentes privaram civis de acesso adequado a cuidados de emergência, água potável e medicamentos essenciais, desencadeando uma catástrofe humanitária.
A dimensão desses conflitos transcende a mera destruição de hospitais e cadeias de suprimentos médicos; eles instrumentalizam os sistemas de saúde como estratégia de guerra. O ataque deliberado à infraestrutura de saúde, a obstrução da ajuda humanitária e a migração forçada de profissionais de saúde desestabilizam ainda mais esses sistemas, tornando populações inteiras vulneráveis a surtos de doenças, desnutrição e traumas psicológicos. Além disso, o deslocamento em massa de civis impõe pressão adicional aos sistemas de saúde regionais e aos esforços humanitários internacionais, globalizando, assim, os impactos da guerra na saúde.
A célebre afirmação de Rudolf Virchow, médico do século XIX e considerado pai da medicina social – “A medicina é uma ciência social e a política nada mais é do que medicina em grande escala” – ressoa profundamente no contexto da guerra moderna. A medicina, portanto, vai além do tratamento de pacientes individualmente, abrangendo a abordagem dos determinantes sociais da saúde, como pobreza, deslocamento, colapso de infraestruturas e acesso a cuidados, todos intrinsecamente ligados a decisões políticas. Decisões políticas, como a redução de financiamento para a saúde de refugiados, a imposição de bloqueios que restringem alimentos e suprimentos médicos, e o ataque a hospitais e socorristas, são, na essência, decisões médicas que moldam diretamente os desfechos da saúde pública e a sobrevivência de civis em zonas de guerra.
Diante desse cenário, pesquisadores, médicos e humanitários devem reconhecer a natureza inerentemente política da saúde. A destruição da infraestrutura de saúde em zonas de conflito não é acidental; é uma escolha estratégica. O deslocamento de médicos e enfermeiros não é uma mera consequência lamentável; é o resultado direto de políticas que desvalorizam a vida humana. A propagação de doenças em campos de refugiados não é inevitável; é resultado da negligência e da escolha deliberada de ignorar evidências científicas.
Assim, reafirma-se a premissa fundamental: não pode haver saúde sem paz, justiça e equidade. A guerra representa a derradeira emergência de saúde pública, e, enquanto suas causas profundas não forem abordadas, os esforços para o progresso serão impedidos por aqueles que optam pela destruição. Torna-se imperativo que as comunidades médica e científica transcendam as fronteiras da pesquisa e da prática clínica para se engajarem em uma defesa que reconheça o elo indissociável entre guerra e saúde.
Para abordar essas questões complexas, é crucial uma compreensão plena dos fatores sociais, legais, políticos, culturais e de saúde pública que contribuem para a existência de conflitos na era moderna. Gino Strada, fundador da ONG EMERGENCY, defendia que médicos não podem permanecer neutros em tempos de guerra, argumentando que a tarefa do médico não é apenas salvar vidas durante o conflito, mas também, e mais fundamentalmente, prevenir a ocorrência da guerra e suas consequências.
A pesquisa pragmática e baseada em evidências deve examinar as funções de cada componente da sociedade, suas interações complexas e sua influência coletiva no comportamento comunitário. Os princípios que regem a relação entre ciência e sociedade são dialéticos, interligando teoria e prática, sendo a integração da teoria científica à prática social um requisito essencial para que as descobertas científicas se traduzam em ações sociais significativas. A metodologia científica é inseparável da ação, e o reconhecimento da posição social da ciência fomenta uma conexão orgânica entre pesquisa científica, o desenvolvimento da indústria socializada e a cultura humana. A ciência deve ser aplicada a serviço da comunidade e, ao mesmo tempo, fazer parte do patrimônio cultural de todo o povo. Tal engajamento não só será benéfico na luta contra a desinformação, mas também criará projetos de pesquisa mais socialmente orientados e, por sua vez, uma ciência de maior impacto.
A guerra não é um evento isolado; é um sintoma de falhas estruturais mais profundas. Enquanto sistemas econômicos de laissez-faire prevalecerem, conflitos continuarão a emergir e escalar, frequentemente exacerbados por mudanças climáticas e desastres ambientais que sobrecarregam ainda mais populações já vulneráveis. Essas crises humanitárias de origem antrópica têm consequências prejudiciais para a saúde pública, desorganizando sistemas de saúde, aumentando a carga de doenças e aprofundando as desigualdades sociais.
A responsabilidade da comunidade científica e médica não se limita a reagir às crises, mas também a preveni-las. Reconhecer o papel social da ciência, fortalecer o engajamento dos cientistas na formulação de políticas, desenvolver estratégias baseadas nas necessidades sociais das pessoas em nível global para abordar os impactos dos conflitos na saúde, melhorar a resiliência nas comunidades afetadas e garantir o acesso equitativo à saúde em contextos de crise não são mais opcionais – são imperativos.
Referência:
MARKOU-PAPPAS, N.; ANSALONI, L. No health without peace. Academia Medicine, v. 2, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.20935/AcadMed7637. Acesso em: 27 jun. 2025.
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