Bianca Chames Ozaki
Medical Affairs Laboratórios Diagnósticos Siemens Healthineers
Junho de 2021
Resumo: A doença causada pelo novo coronavírus que levou à pandemia global é conhecida por atingir os pulmões. Mas, quanto mais pessoas tornam-se infectadas, maior é o entendimento emergente dessa doença. Os médicos e pesquisadores estão percebendo que esse vírus também pode causar danos graves e duradouros em outros órgãos, incluindo os corações e os rins. Nas publicações mais recentes e robustas, vemos as crescentes evidências e discussões de como o vírus pode afetar a função renal à medida que a doença desenvolve e após a recuperação do indivíduo. Essa breve revisão da literatura tem como objetivo discutir os achados dos principais estudos científicos sobre o acometimento renal em pacientes infectados por SARS-CoV-2.
Palavras-chave: COVID-19, doenças renais, síndrome pós-covid, doença renal crônica, lesão renal aguda
Abstract: The disease caused by the new coronavirus that led to the global pandemic is known to affect the lungs. But the more people who become infected, the greater is the emerging understanding of this disease. Doctors and researchers are realizing that this virus can also cause severe and lasting damage to other organs, including the hearts and kidneys. In the most recent and robust publications, we see increasing evidence and discussions of how the virus can affect kidney function as the disease develops and after the individual recovers. This brief literature review aims to discuss the findings of the main scientific studies on renal involvement in patients infected with Sars-CoV-2.
Key Words: COVID-19, kidney diseases, post covid syndrome, chronic kidney disease, acute kidney injury
COVID-19 e o Acometimento Renal
As consequências da COVID-19 a longo prazo ainda não foram esclarecidas. Há uma urgência explícita de estudos de monitoramento a longo prazo relacionados aos sintomas persistentes, função pulmonar e possíveis problemas físicos e psicológicos de pacientes que receberam alta hospitalar. Até agora, poucos desses estudos mesmo com número limitado de amostras foram publicados.
Um dos assuntos que vem chamando atenção nas recentes pesquisas sobre a infecção pelo SARS-CoV-2 refere-se aos efeitos a longo prazo da doença que começaram a ser observados em outros órgãos além dos pulmões. Apesar de ser manifestada, primariamente, por uma infecção no trato respiratório por meio do desenvolvimento já conhecido de uma pneumonia e da síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), a COVID-19 também é caracterizada por uma doença sistêmica com complicações multifatoriais.
À medida que a pandemia continua se desdobrando em diversos lugares do mundo, pesquisas estão encontrando evidências de que a COVID-19 pode acometer os rins de maneiras distintas. Sabe-se que portadores de problemas renais crônicos estão no grupo de risco pela maior probabilidade de complicações na COVID-19. Além disso, estudos realizados com outros coronavírus já apontaram que as próprias condições pulmonares desenvolvidas por uma infecção viral são capazes de ocasionar uma lesão renal aguda (LRA) mesmo em pacientes sem doenças prévias nos rins (CHU et al, 2005). Entretanto, em 2020 também foram levantadas algumas discussões referentes ao acometimento renal direto, primariamente porque a ECA-2 é expressa no tecido renal, principalmente na borda em escova da membrana apical de células tubulares proximais e de podócitos, levantando a hipótese de existir também uma infecção viral direta nos rins, o que foi investigada por alguns autores que encontraram possíveis partículas do novo coronavírus no epitélio tubular e podócitos por meio de autópsias de tecidos renais post-mortem, indicando que a infecção não está limitada aos pulmões. Assim, um dano renal poderia ser desenvolvido tanto pelas complicações pulmonares e sistêmicas causadas pelo SARS-CoV-2, quanto pela infecção do vírus nas próprias células renais (RONCO et al., 2020). Entretanto, algumas autópsias recentes de estudos mais robustos não foram capazes de detectar partículas virais em imuno-histoquímica e hibridização in situ, o que tornou controversa a hipótese de replicação viral no parênquima renal (PECLY et al., 2021).
A Lesão Renal Aguda (LRA) e o prognóstico de pacientes com COVID-19
Considerando a necessidade de identificação de um sistema ou recurso de estratificação precoce de risco dos pacientes com COVID-19 durante o curso da doença, diversos estudos tiveram como objetivo avaliar a relação do desenvolvimento da Lesão Renal Aguda (LRA) com o prognóstico desses pacientes. A LRA é uma síndrome com perda abrupta da função renal que está altamente associada com alta taxa de mortalidade e morbidade e que se mostrou comum em pacientes internados com COVID-19, sendo reportado de 24% a 57% dos casos de pacientes hospitalizados e de 61% a 78% de pacientes em unidades de tratamento intensivo (NUGENT et al., 2021). Embora alguns autores apontem diferentes taxas de incidência de LRA nos pacientes com COVID-19, similarmente concluem que a ocorrência da lesão durante o curso clínico da doença está fortemente relacionada com a mortalidade dos pacientes (FANELLI et al., 2020).
Neste contexto, estudos como o de Cheng et al., (2020) demonstraram que a proteinúria (44%), hematúria (26,9%), creatinina sérica elevada (15,5%) e nitrogênio ureico (14,1%) foram as alterações laboratoriais renais mais frequentes na admissão de pacientes com COVID-19, com 3,2% de pacientes que desenvolveram a LRA (CHENG et al., 2020). Um estudo de Nova Iorque com 2634 pacientes e taxa de mortalidade próxima a 21% demonstrou que, ao analisar os pacientes que tiveram LRA e necessitaram de terapia renal de substituição (TRS), a taxa de mortalidade foi crescente: de 66% e 96%, respectivamente (RICHARDSON et al., 2020).
A avaliação clássica da LRA recomendada por diretrizes internacionais ainda tem como base os valores de creatinina sérica, mas ela representa apenas um indicador de dano renal. Nesse cenário, muitas pesquisas já foram direcionadas à novos biomarcadores nos últimos anos. O marcador conhecido como NGAL (lipocalina associada a gelatinase neutrofílica), está intimamente associado à LRA, pois sua expressão na urina e no sangue aumenta significativamente nas primeiras horas após o desenvolvimento de uma lesão renal aguda. Pesquisas relatam que o nível de NGAL na urina está intimamente associado à gravidade da lesão renal e pode ser detectado com uma precocidade significativa quando comparado a outros marcadores de LRA (SHANG e WANG, 2016), o que permite uma intervenção rápida e potencialmente eficaz.
Autores afirmam que a conscientização das complicações e o monitoramento dos marcadores para a detecção precoce e intervenção efetiva dos danos renais auxilia na redução de morte dos pacientes com COVID-19 na prática clínica (CHENG et al., 2020). Futuras pesquisas devem avaliar outros marcadores em pacientes graves com COVID-19 para avaliação da identificação precoce do risco de desenvolvimento de lesão renal aguda e melhora do prognóstico.
Estudos ilustram impacto renal após COVID-19
Mais de um ano após o início da pandemia da COVID-19, novos estudos sugerem que os indivíduos em recuperação de lesão renal aguda decorrente da COVID-19 exigirão monitoramento renal após alta hospitalar.
A Lesão Renal Aguda é um complicação conhecida entre os pacientes hospitalizados com COVID-19, mas os estudos vem sugerindo que a infecção por SARS-CoV-2 desenvolve uma lesão mais grave do que em pacientes com LRA associada à outras condições e possui menor probabilidade de recuperação hospitalar dessa lesão renal (NUGENT et al., 2021). Entretanto, os efeitos do vírus nos rins, a longo prazo, ainda estão começando a ser investigados.
Um estudo retrospectivo observacional conduzido em Nova Iorque comparou 3345 adultos com COVID-19 e 1265 sem COVID-19, ambos grupos hospitalizados, com um coorte de mais de 9 mil pacientes também hospitalizados no mesmo centro hospitalar, porém em período anterior ao da atual pandemia. De maneira geral, o estudo observa que os pacientes com COVID-19 apresentaram maior incidência de Lesão Renal Aguda em comparação ao coorte anterior (56,9% versus 25,1%, respectivamente). Além disso, os pacientes com LRA e COVID-19 precisaram de mais terapia renal de substituição com menor taxa de recuperação renal hospitalar, o que pode aumentar o risco de doença renal crônica (DRC) ou progressão de uma doença renal crônica existente, destacam os autores (FISHER et al, 2020).
Em outro estudo longitudinal, pesquisadores da Universidade de Yale notaram que, após a alta hospitalar de pacientes com COVID-19 que desenvolveram LRA durante a internação, a função renal diminuiu mais rapidamente do que em comparação com pacientes com LRA que não estava associada à infecção por SARS-CoV-2. Essa redução mais evidente da função renal ocorreu independentemente da gravidade da LRA e das comorbidades dos pacientes, alertando para um potencial efeito da COVID-19. A taxa de filtração glomerular (eTFG) desses pacientes foi acompanhada mesmo após a alta e foi observado que os indivíduos que tinham desenvolvido a LRA associada à COVID-19 apresentaram uma redução mais evidente da eTFG no modelo de cálculo não ajustado (−11.3 mL/min/1,73m²/y; 95% CI, –22,1 a −0,4; P = 0,04) e após ajuste por comorbidades (−12,4 mL/min/1,73m²/y; 95% CI, –23,7 a −1,2; P = 0,03). (NUGENT et al., 2021)
Na China, 1733 pacientes também foram acompanhados durante 6 meses após recuperação e alta hospitalar com o objetivo de avaliar as consequências da COVID-19 a longo prazo e investigar os fatores de risco associados. Nesse estudo, os autores observaram que 13% dos pacientes sem lesão renal aguda e com eTFG normal na fase aguda da COVID-19 apresentaram redução da taxa de filtração glomerular estimada durante o período de acompanhamento (HUANG et al., 2021). Assim, fica claro que esse acompanhamento persistente dos pacientes recuperados da infecção é essencial e necessário, não apenas para entender a relação entre doenças extrapulmonares e o SARS-CoV-2, mas também para encontrar maneiras de reduzir a morbidade e a mortalidade por meio de uma prevenção eficiente.
Conclusões Finais
Mais de um ano após o início da pandemia e os estudos sugerem que os indivíduos em recuperação de uma lesão aguda decorrente da COVID-19 exigirão monitoramento renal contínuo. As lesões renais em pacientes com COVID-19 são mais graves do que em pacientes com lesão renal que não está associada à essa infecção, pois sugere-se que a COVID-19 acarreta em uma lesão renal aguda grave, com maior necessidade de diálise e complicações para a recuperação renal após a alta hospitalar. Esses fatores contribuem para o maior alto risco de desenvolvimento ou progressão de doenças renais. Assim, identificar preditores de redução da função renal em pacientes que desenvolveram lesão renal aguda durante o curso da COVID-19 pode ajudar a priorizar os pacientes que necessitam de acompanhamento ambulatorial rigoroso. Uma maior melhor compreensão da lesão renal associada à COVID-19 deve fornecer oportunidades para ensaios clínicos para melhorar os resultados e informar as diretrizes de gerenciamento ambulatorial de LRA associada à COVID-19.
De fato, as pesquisas aqui citadas possuem algumas, se não diversas, limitações. Desde o protocolo de coletas e execução de estudo que ficaram prejudicados devido à severidade da pandemia que reduziu muitos dos recursos humanos e tecnológicos, até mesmo aos estudos estatísticos aplicados. Além disso, é importante também destacar que todos os dados aqui utilizados são baseados em estudos disponíveis publicamente e em tempo real. Novas pesquisas constantemente publicadas devem ser avaliadas com o intuito de esclarecer melhor o assunto.
Referências
CHENG, Yichun et al. Kidney impairment is associated with in-hospital death of COVID-19 patients. Kidney International, 2020.
FANELLI, Vito et al. Acute kidney injury in SARS-CoV-2 infected patients. Critical Care, v. 24, n. 1, p. 20–22, 2020.
FISHER, Molly et al. AKI in Hospitalized Patients with and without COVID-19: A Comparison Study. American Society of Nephrology, p. 1–13, 2020.
HUANG, Chaolin et al. 6-month consequences of COVID-19 in patients discharged from hospital: a cohort study. The Lancet, v. 397, n. 10270, p. 220–232, 2021. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(20)32656-8>.
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SHANG, Wenjun e WANG, Zhigang. The Update of NGAL in Acute Kidney Injury. Current Protein & Peptide Science, v. 18, n. 12, 2016.
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