Caio Salvino
Olá.
Estou debutando nesta revista como um de seus colunistas, e é claro que o assunto não poderia ser outro, a microbiologia, afinal, é essa a paixão que aquece meu coração há pouco mais de 30 anos.
Trago aqui, ao invés de uma retrospectiva do ano de 2019 para essa especialidade, que vive um de seus mais importantes e críticos momentos movida pela problemática da resistência bacteriana aos antimicrobianos, uma reflexão.
As indústrias bélicas microscópicas
Há, na verdade, novidades de ambos os lados, com precisos lançamentos bélicos microscópicos. De um lado, a indústria farmacêutica lançando novas drogas, eficazes inclusive contra cepas multirresistentes, e do outro, a “indústria bacteriana” lançando novos mecanismos de resistência, facilmente adquiríveis através de trocas de informações genéticas.
Fruto da imaginação em tempos remotos, termos como comunicação bacteriana e, até mesmo, inteligência bacteriana, se tornaram comuns recentemente. Estudos recentes demonstram uma capacidade espetacular de bactérias trocarem informações genéticas entre si, sem depender para isso, de detalhes como gênero ou espécie. Elas simplesmente se aproximam e efetuam trocas de fragmentos de DNA, e as que recebem tais informações, as repassam com a mesma efetividade.
A cada novo grupo de fármacos antibacterianos lançado, mais e mais mecanismos de resistência vão surgindo, tornando a situação praticamente descontrolada, a ponto de ser motivo de campanha mundial promovida pela Organização Mundial da Saúde, em prol do controle sobre o uso dos antimicrobianos, não somente em medicina humana, mas também em medicina veterinária e indústria agrupecuária e de alimentos. O impacto disso, é o verdadeiro caos em que nos encontramos.
QUALIDADE na microbiologia não é necessidade atual, e sim histórica
Em meio a esta verdadeira guerra, estamos nós, microbiologistas, tentando de todas as formas transformar o invisível em visível, para então, poder orientar de forma correta, e o mais precisa possível, aos clínicos em relação à sensibilidade e resistência in vitro destes microorganismos. A única arma que temos para essa missão, é a qualidade, do pré ao pós analítico, seja, da coleta da amostra à reportagem dos laudos, e é inegável a importância desta especialidade no âmbito hospitalar, e mais recentemente, no ambulatorial.
Publicações de altíssimo padrão tem sido uma constante em nosso meio, tais como os clássicos Koneman (Diagnóstico Microbiológico | Texto e Atlas – Guanabara Koogan – atualmente na 7ª edição) e Murray (Manual of Clinical Microbiology – ASM Press – atualmente na 12ª edição), que agora é editado por Karen Caroll, alguns exemplos que se somam aos mais recentes Clinical Microbiology Procedures Handbook (atualmente na 4ª edição – ASM Press), que mesmo sendo atualmente editado por Amy Leber, ainda é chamado por muitos de Isenberg, e os Cumitechs também editados pela ASM Press, pertencente à Sociedade Americana de Microbiologia (ASM).
Através destes clássicos – meu primeiro Koneman foi adquirido em 1988 – e das várias publicações nacionais, e aqui destaco os livros “Procedimentos Básicos Em Microbiologia Clínica” (Oplustil e colaboradores – Editora Sarvier) atualmente na 4ª edição (2019), e “Bacteriologia e Micologia – Para o Laboratório Clínico” (Menezes e Silva e Neufeld – Revinter 2006), buscamos os procedimentos corretos e a implementação de técnicas de coleta adequadas e procedimentos técnicos dentro dos padrões recomendados pelas maiores autoridades do mundo, por décadas, e ainda fazemos isso, vide a longevidade destes livros.
Porém, para o antibiograma, o intervalo entre uma e outra edição começou a não ser suficiente, devido às propostas de atualizações anuais do documento M100 do CLSI – todos os meses de janeiro é publicada uma nova versão atualizada – que popularizou no Brasil desde o final dos anos 90, trazendo uma nova cara para esse complexo exame laboratorial.
Mas, a busca pela qualidade no antibiograma também não vem do período mais recente, mas sim de décadas atrás.
Em 1975, o então NCCLS (National Committee for Clinical Laboratory Standards) publicou o documento ASM-1 – “Performance Standards for Antimicrobial Disc Susceptibility Tests”, e em 1982 o documento M02-A2 – “Performance Standard for Antimicrobic Disc Susceptibility Testing”, já na versão M02-13, e mais tarde, em 1986, o primeiro documento da série M100 – “Performance Standards for Antimicrobial Susceptibility Testing”, que está em sua versão 2019, mesmo após o NCCLS ter mudado seu nome para CLSI (Clinical and Laboratory Standards Institute).
Aproximadamente em 1997, alguns microbiologistas – me incluo nesse grupo – começaram um movimento de educação a colegas de todo o país em torno da padronização do antibiograma utilizando os documentos M02 e M100, sempre em suas edições atualizadas. Este movimento, fez com que os documentos se tornassem conhecidos e passasse a ser a referência para a realização dos testes, de maneira única.
Professores de todos os estados, universidades, cursos de pós-graduação e colegas capacitadores passaram a disseminar seu uso, e dessa maneira, começamos o processo de implantação da qualidade na microbiologia brasileira no quesito antibiograma, e de forma ampla.
Em 2005, o CLSI disponibiliza os documentos para tradução para o português, e a ANVISA os disponibilizou gratuitamente em seu site, para download. Atualmente, o documento M100 é disponibilizado para livre acesso online, onde os colegas que não tem a versão em arquivo, tem acessado para obter suas informações e atualizações. É muito claro que os microbiologistas e profissionais que fazem microbiologia no Brasil tem intimidade com o modelo e documentos desta instituição. São vinte anos de trabalho na educação continuada visando a padronização do antibiograma no país. Seguimos, tradicionalmente, o modelo que o continente segue, sem exceção.
Em abril de 2010, o European Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing (EUCAST) lança seu primeiro documento – versão 1.0 – de padronização do antibiograma, e em 2015 é traduzido para o português pelo Brazilian Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing, e que recentemente ganhou espaço pela publicação da Portaria número 64 do Ministério da Saúde. Este mesmo comitê tem planejado implementar normas européias no país desde sua fundação no ano de 2011.
Mas afinal, após esses mais de vinte anos, obtivemos sucesso?
É claro que sim. Hoje, graças a estes documentos e, principalmente, à cultura que foi semeada há 20 anos, estamos colhendo os frutos, juntamente com os países componentes da OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde – que também seguem estas mesmas diretrizes, CLSI, cujo documento fora oferecido para tradução em português ao Ministério da Saúde em 2017, para distribuição gratuita, sem obter resposta do mesmo órgão, mesmo com mais de 90% dos laboratórios participantes de programas de qualidade declarando a utilização.
Temos que evoluir?
Sim, e a evolução passa por comportamento. Estudar, buscar as atualizações dos documentos – dados dos programas de controle de qualidade mostram que muitos estão com os mesmos em versões antigas, buscar participar de discussões da especialidade, encontros organizados por empresas regionais, cursos à distância e publicações científicas de alta confiabilidade. Atualmente, os congressos científicos apenas contemplam a norma européia.
Estamos no caminho?
Sim, mesmo que haja no momento, tentativas de discussões envolvendo os modelos disponíveis para padronização – americano (CLSI) e europeu (EUCAST), estamos no caminho certo. Começamos em 1987 a usar documentos do então NCCLS, e hoje, buscamos consolidar modelos. Discórdias fazem parte da democracia, assim como o consenso, e estou certo de que haverá um, sendo que, para tal, o debate – que teve início em dezembro deste ano, em Brasília – é amplamente necessário. Lembro que de nada adianta definir modelos, se não houver um controle efetivo na qualidade dos laboratórios brasileiros.
Qual o futuro do Brasil em relação ao antibiograma e resistência bacteriana?
No mundo moderno, o futuro já é presente. Há discussões profundas envolvendo os ministérios da agricultura e saúde, em busca de um controle sobre o uso de antimicrobianos, e isso é fundamental! Além disso, programas de controle efetivo estão sendo aplicados nos hospitais brasileiros, os chamados “Antimicrobial Stewardship”, que educam os prescritores a prescreverem, baseados em evidências.
A verdade é que não temos dados suficientes para tomarmos decisões profundas em relação à antibioticoterapia, por isso temos que continuar utilizando guidelines importados, construídos sobre dados importados, e isso serve para tratamento e diagnóstico. Nós e nossos vizinhos e irmãos do continente americano como um todo, devemos unificar nossos modelos para evitar confusões na coleta e análise dos dados, e futuramente, um modelo de padronização único e internacional deve passar a nos guiar.
Quanto ao laboratório de Microbiologia Clínica
A evolução também se dá no laboratório clínico, que dispõe agora, de testes rápidos, tanto em imunocromatografia quanto moleculares, o que tem causado enorme impacto no controle do uso de antimicrobianos, gerando redução de custos aos hospitais e também na seleção de cepas resistentes. Dados concretos, obtidos através de programas internacionais, devem ser realidade ainda mais presente em 2020 no país, e é o que esperamos que aconteça.
Em 2020…
Mais cultura da qualidade na microbiologia é nossa meta enquanto profissionais, empresários educadores que somos, buscando levar conhecimento e informações aos 4 cantos do Brasil, seja em aulas nos cursos presenciais e de pós graduação, seja em eventos regionais e nacionais, ou ainda, através do nosso querido Papo de Jaleco, o talk-show das análises clínicas.
O ano promete.
<Artigo presente na íntegra na Revista Newslab Ed 157>
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- Clinical Microbiology Procedures Handbook, Isenberg H, 3rd Ed., American Society for Microbiology, Washington, DC.
- Clinical Microbiology Procedures Handbook, Leber A, 4th Ed., American Society for Microbiology, Washington, DC.
- Manual of Clinical Microbiology, 7th ed. Murray P, Ed. American Society for Microbiology, Washington, DC.
- Manual of Clinical Microbiology, 12nd ed. Caroll K, Ed. American Society for Microbiology, Washington, DC.
- Koneman’s color atlas and textbook of diagnostic microbiology, 7th ed.. KONEMAN, E.W., Ed Lippincott Williams and Wilkins, Philadelphia, USA 2016
- BACTERIOLOGIA E MICOLOGIA: PARA O LABORATÓRIO CLÍNICO, 1a Ed, Menezes e Silva, CH. e Neufeld, PM., Ed. Revinter 2006.
- PROCEDIMENTOS BÁSICOS – EM MICROBIOLOGIA CLÍNICA, 4ª Ed., Oplustil C e cols, Ed Sarvier, 2019
- ASM Cumitechs, ver https://www.asm.org/Guideline/Cumitechs
- CLSI acesso FREE ao documento M100 versão 2019, ver em http://em100.edaptivedocs.net/dashboard.aspx
- EUCAST/BrCast, ver em http://brcast.org.br/documentos/