Laboratórios de pesquisa brasileiros anunciam ter encontrado e sintetizado um peptídeo, ou seja, um fragmento de proteína, que protege células pulmonares humanas contra a infecção pelo sars-cov-2 e diminui a inflamação pulmonar em camundongos infectados pelo vírus. Os resultados do estudo acabam de ser publicados na revista científica Antiviral Research. Ainda em fase experimental, não testado em humanos, achados representam avanço no caminho para uma medicação nacional contra a doença.
A pesquisa começou com uma modelagem in silico (experimentos simulados em computadores) com foco nas regiões ocupadas pela “principal porta de entrada” do sars-cov-2 nas células humanas, a enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) que atua no controle da pressão arterial e, além disso, interage com a proteína Spike do vírus. A Spike está associada à capacidade do vírus entrar nas células.
Durante as simulações da ligação da ACE2 com a proteína Spike, descobriram na cadeia de aminoácidos da ACE2 “resíduos de aminoácidos críticos na entrada do vírus”, informa o pesquisador Geraldo Aleixo Passos, um dos coordenadores do estudo e professor Departamento de Biologia Básica e Oral da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP.
Com base nas informações obtidas nos testes de computador, sintetizaram em laboratório um “composto químico (peptídeo) que se assemelha a uma parte do próprio receptor natural (ACE2) que está presente na superfície das células humanas”, conta o professor. O peptídeo sintético foi então avaliado em experimentos reais, inibindo a infecção do sars-cov-2 em culturas de células pulmonares humanas, protegendo camundongos suscetíveis à covid-19 e tratando a inflamação pulmonar dos camundongos doentes.
O gráfico mostra a ação do peptídeo na célula. O sars-cov-2 se liga aos receptores ACE2 na superfície das células hospedeiras. O peptídeo mimético WT ACE2 (X) compete com o receptor nativo, interage com a proteína Spike e bloqueia a ligação e entrada viral. Foto: Extraída do artigo
Supercomputador e os resíduos que impedem a entrada do vírus
Os experimentos in silico foram realizados através de programas avançados e um supercomputador do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações do Governo Federal em Campinas-SP. Com as tecnologias, puderam simular a ligação do peptídeo ACE2 com a proteína do vírus (Spike), testando diversos parâmetros como pH, força iônica, temperatura, a distância entre os átomos das moléculas envolvidas e os tipos de ligações químicas possíveis, entre outros.
Ao comentar essa fase inicial do estudo e a necessidade de um supercomputador, Passos justifica que a simulação “demorou mais de um mês para calcular como ficaria o contato entre a proteína Spike do vírus e o peptídeo humano num intervalo de tempo de 640 nanossegundos”. Vale lembrar que um nanossegundo equivale a um bilionésimo de segundo, o mesmo que uma parte de um segundo dividido por um bilhão. Mas, “já foi o suficiente para prever como se dá o contato da Spike com o peptídeo que identificamos”, explica o professor Passos.
A precisão dessa análise promoveu a descoberta dos tais aminoácidos (resíduos) críticos da ACE2 que se ligam mais fortemente ao vírus da covid-19, o que embasou a síntese em laboratório do peptídeo (fragmento da proteína) semelhante à ACE2 produzida naturalmente pelo organismo. A confirmação de que esses resíduos “são críticos para a entrada do vírus nas células” veio com os testes reais realizados com “peptídeos mutantes” (em que substituíram os aminoácidos críticos por outros aminoácidos).
Para entender melhor o que significam os resíduos de aminoácidos, o pesquisador explica que as proteínas são formadas por um grande número de aminoácidos ligados uns aos outros formando uma longa fita. Então, cada um dos aminoácidos desta fita representa um resíduo, ou unidade formadora da proteína. Os resíduos de aminoácidos críticos da ACE2 “são aqueles resíduos mais importantes na ligação com a Spike do vírus”.
Histopatologia pulmonar de camundongos suscetíveis ao sars-cov- após tratamento intranasal com o peptídeo quimérico WT ACE2. Partículas virais de sars-cov-2 foram incubadas com ou sem o peptídeo WT ACE2 e aplicadas por via nasal em camundongos. Cinco dias após a infecção, o tecido pulmonar foi analisado histologicamente (A) e a área de inflamação foi determinada (B). Foto: Extraída do artigo
Escudo molecular contra o vírus
A síntese do peptídeo, que os pesquisadores batizaram de WT ACE2, foi feita quimicamente em laboratório do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Os testes in vitro e in vivo com o peptídeo sintético indicaram que sua ação se dá sobre os vírus antes que invadam as células, agindo com um “escudo molecular que bloqueia sua entrada”, diz o professor.
Passos informa que os estudos continuam e agora estão interessados “em saber como se dá a dispersão do peptídeo sintético e sua duração dentro do corpo, mas, por enquanto, ainda em fase experimental”. Já os testes em seres humanos ainda não têm data para acontecer.
A pesquisa financiada pela FAPESP, CNPq e CAPES foi multidisciplinar e multicêntrica, pois envolveu cientistas do Centro de Pesquisa em Virologia e dos Departamentos de Patologia e Medicina Legal, de Biologia Celular e Molecular, de Clínica Médica e de Farmacologia, da FMRP.
Mais informações: e-mail: passos@usp.br, com professor Geraldo Passos
*Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado
Matéria – Jornal USP, Texto: Rita Stella
Arte: Diego Facundini*