RESUMO
O valor crítico é um resultado laboratorial que representa um estado fisiopatológico de risco à vida do paciente. A comunicação desses resultados é de responsabilidade do laboratório e, segundo a literatura, 95% dos médicos a considera útil na adoção de condutas e no manuseio dos pacientes. Dois terços dos resultados críticos resultam em alguma mudança na conduta terapêutica. A comunicação dos resultados críticos é um procedimento previsto nas listas de verificação dos programas de acreditação laboratorial, portanto o laboratório deve estabelecer a lista dos exames, os respectivos valores críticos e o procedimento, descrevendo o fluxo de comunicação. O indicador de desempenho para esta atividade deve considerar o tempo decorrido entre a liberação do resultado e a sua efetiva comunicação e o percentual de sucesso na comunicação. Não existe padronização acerca dos parâmetros laboratoriais que necessitam ter valores críticos estabelecidos, nem mesmo os intervalos a serem considerados para fins de notificação. A atualização frequente da lista de exames e dos intervalos de valores críticos com base na revisão da literatura e na troca de experiências entre os laboratórios clínicos garante o processo de melhoria contínua para esse procedimento e a segurança do paciente.
Palavras-chave: laboratórios hospitalares; segurança do paciente; indicadores de qualidade em assistência à saúde; administração dos cuidados ao paciente; gestão de qualidade total.
INTRODUÇÃO
A importância dos laboratórios clínicos é atualmente reconhecida na atividade médica; cerca de 70% das decisões são tomadas com base em testes de laboratório (1). Uma das funções mais importantes de um laboratório clínico é a comunicação clara, precisa e rápida de um valor crítico para os prestadores de cuidados ao paciente (2).
A maioria dos resultados dos testes laboratoriais tem implicações diagnósticas e terapêuticas que não requerem ação imediata. Porém, os achados laboratoriais às vezes são muito alterados e podem indicar uma situação potencialmente fatal para o paciente (3).
O termo “valor laboratorial crítico”, também conhecido como resultado crítico, valor de pânico ou valor de alerta, foi definido por George D. Lundberg em 1972 como resultado que representa um estado fisiopatológico diferente do normal, que representa risco à vida do paciente. a menos que uma ação imediata seja tomada (1, 4, 5). Atualmente, o uso do termo valor de pânico é desencorajado, por sugerir estresse emocional e por ir contra o processo de comunicar informações com clareza (2).
Os valores críticos geralmente representam menos de 2% dos resultados do teste em um laboratório clínico (6).
Estudo realizado com 623 instituições de saúde revelou que 95% dos médicos consideram útil a comunicação de resultados críticos no manejo dos pacientes e 75% documentam os valores em prontuários. Dois terços dos resultados críticos levam a alguma mudança na abordagem terapêutica (7).
O relato de valores críticos tornou-se uma prática de qualidade obrigatória nos procedimentos de medicina laboratorial, principalmente após a introdução de programas de acreditação e certificação para laboratórios clínicos (8).
A comunicação de valores críticos é exigida por diversas leis, regulamentos e programas de acreditação, como, por exemplo, a International Organization for Standardization (ISO) 15189 de 2007, The Joint Commission (TJC) no National Patient Safety Goals (NPSG) 02.03. 01, o Colégio de Patologistas Americanos (CAP) da Organização Nacional de Acreditação (ONA), o programa de acreditação de laboratórios clínicos da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica / Medicina Laboratorial (PALC-SBPC / ML), entre outros (9-12). E como até o momento não existe uma lista padronizada de valores críticos na literatura médica, espera-se que cada instituição elabore sua própria lista (1).
O PROCESSO DE DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA DE VALOR CRÍTICO
A formulação da lista de exames e seus respectivos valores críticos deve ser coordenada pelo diretor ou responsável pelo laboratório, de acordo com o tipo de paciente atendido no serviço, as doenças mais prevalentes e sua fisiopatologia, por consenso entre as equipe clínica (1, 4, 13). Assim, é necessário realizar reuniões com os chefes e membros dos diferentes departamentos clínicos e cirúrgicos, com a administração do hospital e com a equipe de enfermagem, para definir a política de notificação de valores críticos, escolher os exames a serem incluídos na lista, como bem como os valores que devem ser reportados (4).
É importante ter em mente que listas muito extensas ou valores críticos inadequados – com limites que exigem notificação excessiva – podem resultar em sobrecarga de informações, trabalho desnecessário por parte da equipe do laboratório e uma atitude negativa dos médicos em relação a essa importante função laboratorial. Por sua vez, listas muito reduzidas e exclusivas – com limiares muito altos ou muito baixos – podem não impedir um desfecho clínico adverso e atrasar a tomada de decisão. Essas situações podem ser evitadas por meio da revisão e atualização periódica da lista de valores críticos (4, 13).
Para o estabelecimento de uma lista, é fundamental a consulta de artigos de revisão, listas publicadas anteriormente ou disponíveis na internet, de alguns serviços de saúde de referência, como a Mayo Clinic (http://www.mayomedicallaboratories.com/articles/ criticalvalues / view.php? name = Critical + Values% 2FCritical + Resultados + Lista) e Mount Sinai Hospital (http://icahn.mssm.edu/static_files/MSSM/Files/Research/Labs/Clinical%20Pathology%20Laboratory/CriticalValuesTable .pdf) (1, 4, 14-17). É importante destacar que as diferenças nos valores de corte e nos analitos escolhidos pelas diferentes instituições estão relacionadas às características dos pacientes tratados – níveis de risco – e aos métodos laboratoriais empregados (6, 14).
Em geral, as listas são compostas por testes de bioquímica, hematologia, toxicologia e microbiologia, tanto de pacientes adultos quanto pediátricos (2).
O PROCEDIMENTO DE RELATÓRIO
Após estabelecer a lista de valores críticos, é necessário descrever a conduta para relatar os valores críticos. Atualmente, os procedimentos não são bem padronizados, com grande variabilidade entre as instituições (5).
A primeira etapa é a identificação de um valor crítico pelo analista do laboratório, seja a partir de um sinal de alerta pré-programado no equipamento ou do próprio sistema de informações do laboratório. No procedimento escrito, deve ser claramente indicado se haverá repetições ou algum tipo de verificação de resultado antes do reporte, incluindo as ações que devem ser realizadas em testes manuais que não podem ser repetidos, como, por exemplo, em testes de cultura – área de microbiologia (2).
Problemas pré-analíticos que podem causar resultados falsos críticos devem ser de conhecimento geral. Alguns deles incluem contaminação da amostra, condições inadequadas de transporte, tempo incorreto de coleta de amostra (por exemplo, para testes toxicológicos) e atraso no processamento da amostra (1).
A etapa seguinte será a comunicação desse resultado, que poderá ser realizada por telefone ou sistema de alerta informatizado (14). Existem controvérsias sobre o melhor método de relatório. Em várias instituições, o modelo padrão para notificação de valores críticos inclui o processo manual de contato, por telefone ou pessoalmente, com o médico assistente. Essa é uma tarefa demorada, que retarda a condução das demais atividades do laboratório, além de resultar na transferência de informações para um intermediário, e aumenta a probabilidade de erros e atrasos no processo de comunicação de valores críticos (18). Alguns defendem que o uso de um sistema de alerta informatizado evitaria os potenciais erros de comunicação, aumentando a taxa de sucesso e encurtando o tempo de notificação (14).
É importante definir quem será o responsável por relatar os resultados. O ideal é que a notificação seja feita pelo patologista clínico, pois haverá uma oportunidade mais racional para analisar e discutir o caso (1). Embora esteja estabelecido que os valores críticos devem ser reportados a um profissional capaz de atuar de acordo com as informações recebidas, a falta de consenso geral sobre o profissional a ser informado diretamente (médico, enfermeiro) causa variação significativa nos procedimentos de reporte de valores críticos em as diversas instituições (19).
REPETIÇÃO DE TESTE DE VALORES CRÍTICOS
Existem poucos trabalhos na literatura sobre a repetição de um resultado crítico para cada analito ou para o mesmo paciente. De acordo com Howanitz et al. (2006, 2007) (20, 21), analitos como sódio e cálcio podem ser repetidos mais de uma vez para o mesmo paciente. No entanto, não há consenso sobre quais testes laboratoriais estão sujeitos à repetição de valores críticos, e há poucos dados sobre a distribuição desses valores. Além disso, não há dados comparando desfechos clínicos entre pacientes que apresentam mais valores críticos relatados e aqueles com apenas um valor crítico relatado. Yang et al. (2013) (22) investigaram a ocorrência, a distribuição de valores críticos de repetição e a relação entre a frequência desses valores e os desfechos dos pacientes, a fim de fornecer aos hospitais informações sobre como melhorar as políticas de repetição de resultados. Eles verificaram que todos os itens avaliados eram passíveis de repetição; em média cada paciente teve duas ocorrências de valor de repetição, com tempo mediano de intervalo de 8 horas. Para os pacientes com repetição dos valores críticos de potássio e plaquetas, verificou-se maior tempo de internação, com pior evolução (22).
De acordo com a norma ISO 15189: 2007 e o programa de acreditação do College of American Pathologists (CAP) (GEN 41330), os valores críticos relatados devem ser documentados, com data, hora, analista de laboratório, profissional notificado e o resultado relatado. Qualquer dificuldade no preenchimento desses dados deve ser registrada e revisada durante as auditorias (9). No final de cada mês deve ser elaborado um relatório com a respetiva análise crítica e possíveis ações de melhoria para manter ou aumentar o nível de desempenho na comunicação dos resultados críticos.
Outro requisito importante, de acordo com a Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations, é quanto ao profissional de saúde receptor: ele deve reler o resultado do exame, ou seja, confirmar o resultado recebido e informar a identificação do paciente. Por fim, o tempo de relatório do valor crítico deve ser medido (5).
AVALIAÇÃO DE RELATÓRIO
Os laboratórios são responsáveis por detectar resultados potencialmente fatais, relatando-os aos profissionais de saúde, bem como monitorar e melhorar o tempo de notificação e recebimento dos valores críticos (8).
O indicador da política de valor crítico é o tempo de resposta, definido como o tempo decorrido entre o momento em que o profissional identifica o exame com valor crítico e o momento em que entra em contato com o médico solicitante ou com a equipe responsável por tomar as medidas cabíveis para reduzir ou evitar eventos adversos, evidenciados pelo aumento da morbimortalidade, caso não haja intervenção oportuna (1).
Cada laboratório deve determinar seu próprio tempo de relatório, porque existe variação tanto entre as instituições quanto na literatura. Um estudo CAP Q-Track de 180 instituições, realizado em 2007, obteve um tempo médio para relatar um valor crítico em torno de 6,1 minutos para pacientes internados e 13,7 minutos para pacientes ambulatoriais (5). Outro estudo do CAP, realizado em 2008 com 121 instituições, obteve tempo mediano de 4 minutos para relato de valor crítico, e 96% deles incluíram a releitura (6). Porém, estudo comparando a eficácia do processo de notificação entre ligação telefônica e sistema de alerta informatizado demonstrou maior variação, chegando a aproximadamente 30 minutos no sistema de ligação telefônica e 11 minutos na notificação informatizada, com 50,9% e 10,9% de notificações malsucedidas ( mais de uma hora), respectivamente (14). De acordo com o CAP, o relatório de valor crítico dentro de 15-30 minutos após o teste seria uma meta razoável para a maioria dos ambientes de internação (6).
Para diminuir a taxa de notificações malsucedidas, será necessário garantir o controle do tempo de notificação, permitir procedimentos mais rápidos, evitar erros de comunicação (ausência de releitura) e diminuir os obstáculos e dificuldades de notificação em encontrar o médico responsável (6, 14).
CONCLUSÃO
O estabelecimento de uma política eficaz de relato de valores críticos, além de fundamental para o tratamento e segurança do paciente, deve ser considerada uma oportunidade para uma cooperação mais estreita entre o patologista e a equipe médica. Não deve ser visto apenas como mais um requisito dos programas de acreditação, mas uma forma de o laboratório garantir o cuidado centrado no paciente.
Com o desenvolvimento de novos métodos de relatórios computadorizados, novos procedimentos de comunicação aparecerão e o tempo de notificação diminuirá. Por enquanto, é necessária uma padronização dos procedimentos de relato de valores críticos para permitir a comparação entre os laboratórios clínicos e a criação de normas internacionais de qualidade.
REFERÊNCIAS
1. Maya GC. Valores ajustados no laboratório clínico: de la teoría a la práctica. Medicina & Laboratorio. 2011; 17: 331-50.
2. Genzen JR, Tormey CA. Consulta de patologia sobre relato de valores críticos. Am J Clin Pathol. 2011; 135: 505-13.
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4. Doering TA, Plapp F, Crawford JM. Estabelecer uma base de evidências para limites de valores laboratoriais críticos. Am J Clin Pathol. 2014; 142: 617-28.
5. Wagar EA, Stankovic AK, Wilkinson DS, Walsh M, Souers RJ. Monitoramento de avaliação de valores críticos de laboratório: um estudo Q-Tracks do College of American Pathologists de 180 instituições. Arch Pathol Lab Med. 2007; 131: 44-9.
6. Valenstein PN, Wagar EA, Stankovic AK, Walsh MK, Schneider F. Notificação de resultados críticos: um estudo Q-Probes do College of American Pathologists de 121 instituições. Arch Pathol Lab Med. 2008; 132: 1862-7.
7. Howanitz PJ, Steindel SJ, Heard NV. Políticas e procedimentos de valores críticos de laboratório: um estudo Q-Probes do College of American Pathologists em 623 instituições. Arch Pathol Lab Med. 2002; 126: 663-9.
8. Piva E, Sciacovelli L, Zaninotto M, Laposata M, Plebani M. Avaliação da eficácia de um sistema de notificação computadorizado para relatar valores críticos. Am J Clin Pathol. 2009; 131: 432-41.
9. Organização Internacional de Normalização. ISO 15189: 2007: laboratórios médicos: requisitos particulares de qualidade e competência [itens 5.5.3; 5.8.7 e 5.8.8] [Internet]. Disponível em: www.iso.org.
10. O Programa de Acreditação da Comissão Conjunta. Laboratório, metas nacionais de segurança do paciente (NPSG.02.03.01) [Internet]. Disponível em: http://www.jointcommission.org/.
11. College of American Pathologists. Lista de verificação geral do laboratório [componentes GEN.41320, GEN.41330 e GEN.41340] [Internet]. Disponível em: www.cap.org.
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17. Escola de Medicina Icahn no Monte Sinai. Lista de notificação de valor crítico [Internet]. Disponível em: http://icahn.mssm.edu/static_files/MSSM/Files/Research/Labs/Clinical%20Pathology%20Laboratory/CriticalValuesTable.pdf.
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21. Howanitz JH, Howanitz PJ. Avaliação dos valores críticos de sódio no soro e no sangue total. Am J Clin Pathol. 2007; 127: 56-9.
22. Yang D, Zhou Y, Yang C. Análise de valores críticos de repetição de laboratório em um grande hospital universitário terciário na China. PLoS One. 2013; 8 (3): e59518.
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Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial
http://www.dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20160008