Tratamento precoce com uso de ácido tranexâmico poderia salvar centenas de milhares de vidas pelo mundo.
O ácido tranexâmico, um antifibrinolítico usado para tratar ou prevenir a perda excessiva de sangue, reduz significativamente as mortes por traumatismo cranioencefálico, mostram os resultados de um grande ensaio clínico multicêntrico e randomizado.
Os pesquisadores descobriram que a administração de ácido tranexâmico até três horas após o traumatismo cranioencefálico está associado a uma redução de 20% das mortes entre pessoas que sofreram traumatismo leve a moderado, sem evidências de eventos adversos ou de complicações.
No entanto, não houve redução aparente das mortes entre as pessoas que sofreram lesão cranioencefálica grave.
“Este estudo é um marco. Após décadas de pesquisa e muitas tentativas frustradas, este é o primeiro trabalho a mostrar que um medicamento pode reduzir a morte associada ao traumatismo cranioencefálico. Não só achamos que isso poderá salvar centenas de milhares de vidas em todo o mundo, mas sem dúvida renovará o entusiasmo por pesquisas que buscam medicamentos para este quadro devastador”, disse em um comunicado o copesquisador do estudo, Dr. Antonio Belli, neurocirurgião e professor de neurocirurgia de trauma na University of Birmingham, no Reino Unido.
Os resultados do estudo CRASH-3 sugerem que “todos os pacientes com trauma devem receber ácido tranexâmico durante o atendimento no local do ocorrido ou o mais rápido possível”, disse o copesquisador Dr. Ian Roberts, médico, professor de epidemiologia e saúde pública na London School of Hygiene and Tropical Medicine.
O estudo foi publicado on-line em 14 de outubro no periódico Lancet.
Ascensão do traumatismo cranioencefálico
Estima-se que ocorram mais de 60 milhões de casos de traumatismo cranioencefálico por ano em todo o mundo, e que este número está em ascensão. Acidentes com veículos motorizados e quedas são as principais causas.
A hemorragia intracraniana é uma complicação comum do traumatismo cranioencefálico. A progressão da hemorragia intracraniana pode levar a aumento da pressão intracraniana, além de herniação cerebral e morte.
O ácido tranexâmico reduz o sangramento ao inibir a quebra enzimática dos coágulos sanguíneos de fibrina.
Vários estudos com pacientes cirúrgicos “mostram que se o ácido tranexâmico for administrado imediatamente antes do cirurgião fazer os cortes, os pacientes sangram menos do que com placebo”, disse o Dr. Ian.
A pesquisa também mostrou que o ácido tranexâmico reduz o risco de sangramento em mulheres com hemorragia pós-parto.
Um estudo anterior (o ensaio clínico CRASH2) mostrou que em pacientes com hemorragia extracraniana grave, a administração de ácido tranexâmico até três horas após o trauma reduz as mortes por hemorragia em um terço. No entanto, mesmo um pequeno atraso no tratamento levou a uma redução do benefício.
Com base nesses resultados, o ácido tranexâmico foi incluído nas diretrizes para o atendimento pré-hospitalar de pacientes com trauma. No entanto, os pacientes com traumatismo cranioencefálico isolado foram excluídos.
“As pessoas se perguntavam se o ácido tranexâmico seria eficaz no traumatismo cranioencefálico isolado”, disse o Dr. Ian. “Não havia evidências de que seria eficaz em pacientes apenas com lesões na cabeça.”
Gravidade das lesões como fator
Para o estudo, 12.737 pacientes de 29 países foram aleatoriamente designados para receber ácido tranexâmico ou placebo até três horas após um traumatismo cranioencefálico.
O desfecho primário foi morte (no hospital) associada ao traumatismo cranioencefálico até 28 dias após o trauma. Houve 2.560 mortes; a mediana de tempo até o óbito foi de 59 horas após o trauma.
Os pesquisadores obtiveram dados sobre os desfechos de 9.127 pacientes. Entre estes, o risco de morte relacionada com traumatismo cranioencefálico foi de 18,5% entre os pacientes que receberam o ácido tranexâmico e de 19,8% entre os que receberam placebo (razão de risco, RR, de 0,94; intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,86 a 1,02).
A análise de sensibilidade excluiu os pacientes com três pontos na escala de coma de Glasgow e os que apresentaram pupila não reativa bilateral.
“Para todos os efeitos, esses pacientes são considerados irrecuperáveis desde o começo, portanto, antes mesmo de receberem o tratamento testado”, disse o Dr. Ian. “Eles obviamente seriam distribuídos igualmente entre os grupos e diluiriam qualquer efeito do tratamento.”
Nesta análise de sensibilidade, a taxa de morte relacionada com traumatismo cranioencefálico foi de 12,5% no grupo do ácido tranexâmico em comparação com 14,0% no grupo do placebo (RR = 0,89; IC 95%, de 0,80 a 1,00).
“Quando excluímos os pacientes que não poderiam sobreviver desde antes do tratamento, o efeito foi maior; houve mais benefício”, disse o Dr. Ian.
Embora a análise de sensibilidade tenha excluído pacientes com pupila não reativa bilateral, pacientes com pupila não reativa unilateral não foram excluídos.
“Se tivéssemos excluído essas pessoas, o efeito do tratamento seria ainda maior”, disse o Dr. Ian.
“O tratamento parece muito bom em prevenir mortes por traumatismo cranioencefálico quando há potencial de benefício; portanto, para as pessoas com uma recuperação possível, é muito eficaz. Porém, quanto mais o caso parece não ter salvação, menos eficaz o tratamento fica”, afirmou ele.
Sem efeitos colaterais
Sobre o momento do tratamento, para os pacientes que receberam a intervenção até uma hora após o trauma, o RR de morte relacionada com o traumatismo cranioencefálico foi de 0,96 (IC 95%, de 0,79 a 1,17); para aqueles que receberam o medicamento mais de uma a três horas após o trauma, o RR foi de 0,93 (IC 95%, de 0,85 a 1,02); e para aqueles que receberam a intervenção mais de três horas após o trauma, o RR foi de 0,94 (IC 95%, de 0,81 a 1,09).
Os pesquisadores ressaltam que os pacientes tratados logo após o traumatismo cranioencefálico geralmente apresentam traumas mais graves e, portanto, o efeito do momento do tratamento pode ser confundido pela gravidade da lesão.
Após o ajuste pela escala de coma de Glasgow, pressão arterial sistólica e idade, o tratamento precoce foi mais eficaz do que o tratamento tardio nos pacientes com traumatismo cranioencefálico leve ou moderado (P = 0,005), mas não houve efeito óbvio do momento do tratamento entre os pacientes com traumatismo cranioencefálico grave (P = 0,73).
O medicamento é mais eficaz em pacientes com lesões menos graves porque “só é possível prevenir algo que ainda não aconteceu”, disse o Dr. Ian.
“O tratamento é provavelmente menos eficaz em pacientes gravemente comatosos porque eles já tiveram hemorragia intracerebral. O maior potencial de benefício está em pacientes com traumatismo cranioencefálico leve ou moderado que têm um sangramento intracerebral mais lento”, disse ele.
A análise também mostrou uma redução substancial das mortes relacionadas com traumatismo cranioencefálico até 24 horas após o trauma nos pacientes tratados.
Os resultados devem tornar as diretrizes mais simples – talvez com a recomendação de que todos os pacientes com trauma recebam uma injeção de 1 g de ácido tranexâmico o mais rápido possível após traumatismo cranioencefálico, disse o Dr. Ian. Idealmente, o tratamento deve ser feito no local do acidente ou na ambulância a caminho do hospital, acrescentou ele.
Os pesquisadores avaliaram o efeito do ácido tranexâmico em sequelas nos sobreviventes, comparando a pontuação média da Disability Rating Scale entre os grupos do ácido tranexâmico e do placebo. Os escores médios foram semelhantes entre os grupos e para os pacientes tratados até três horas e após três horas do trauma.
O risco de eventos vasculares oclusivos e outras complicações foi semelhante nos dois grupos. Não houve evidências de que o ácido tranexâmico tenha aumentado a ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC) fatal ou não. O risco de convulsões foi semelhante entre os grupos, assim como o número de outros efeitos colaterais.
“Sabemos que esta intervenção é segura; não há absolutamente nenhum efeito colateral”, disse o Dr. Ian.
Mudança na prática médica
Em um editorial que acompanha o estudo, o Dr. Andrew P. Cap, Ph.D., médico no US Army Institute of Surgical Research, Fort Sam Houston, nos Estados Unidos, descreveu os achados como “notáveis”, e disse que “mudarão a prática clínica”.
Representa “um enorme esforço para estudar um problema clínico difícil”, disse o Dr. Andrew.
Juntos, CRASH-3, CRASH-2 e o ensaio clínico de mulheres com hemorragia peripartum contaram mais de 53.000 pacientes na análise dos efeitos do ácido tranexâmico no sangramento.
“Os resultados de cada estudo, de forma independente e em conjunto, são claros: o ácido tranexâmico reduz o risco de morte devido ao sangramento, independentemente da causa”, escreve ele.
Estudos futuros podem explorar os efeitos de doses maiores em pacientes com sangramento ou possivelmente vias alternativas de administração, como administração intramuscular, que podem facilitar uma intervenção precoce, acrescentou.
Também pode valer a pena considerar a combinação dos efeitos antifibrinolíticos do ácido tranexâmico no sangramento com o bloqueio dos receptores de bradicinina, o que poderia reduzir o edema cerebral e potencialmente resultar em redução mais expressiva de mortes.
Comentando o estudo para o Medscape, o especialista em traumatismo cranioencefálico, Dr. Frank Conidi, médico, ex-presidente imediato da Florida Society of Neurology e diretor do Florida Center for Headache and Sports Neurology, disse estar “bastante impressionado” com o número de pacientes recrutados, o que conferiu “poder significativo” aos resultados.
Embora seja “maravilhoso” que o estudo tenha mostrado uma redução positiva no total de mortes de pacientes, “os desfechos que de fato queremos analisar são as sequelas e a qualidade de vida”, disse o Dr. Frank.
“De uma perspectiva clínica, acho que há potencial para pacientes com pontuações mais altas na escala de coma de Glasgow, principalmente pelo baixo perfil de efeitos colaterais.”
O Dr. Frank disse que gostaria de saber se a eficácia do medicamento variou entre os pacientes com diferentes subtipos de sangramento, por exemplo, hemorragia intracraniana, hemorragia subaracnóide, hematoma epidural e hematoma subdural.
O estudo foi financiado pelo JP Moulton Charitable Trust, pelo National Institute for Health Research Health Technology Assessment, pelo Joint Global Health Trials, pelo Medical Research Council, pelo UK Department for International Development, pelo Global Challenges Research Fund e pelo Wellcome Trust. Os Drs. Ian, Belli, Andrew e Frank informaram não ter relações financeiras relevantes.
Lancet. Publicado on-line em 14 de outubro de 2019. Texto completo, Editorial
Com informações de Medscape.