Os efeitos promissores de uma molécula denominada calpeptina S no combate à infecção pelo SARS-CoV-2 foram descritos por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e colaboradores em artigo publicado este mês na revista Communications Biology.
Em testes com hamsters, o tratamento reduziu a produção de partículas virais na traqueia do animal após o quinto dia de infecção. Em células Vero (linha originária de rim de macaco e muito usada como modelo experimental), baixas concentrações do composto (na faixa de nanomolar) foram capazes de eliminar a carga viral. Já em célula humana houve redução de até 80% nas alterações causadas pela invasão viral.
Para potencializar a ação da calpeptina, os pesquisadores desenvolveram uma nova molécula, a calpeptina S, que é fundida com uma molécula oriunda do enxofre (imagem: Patrick Y. A. Reinke Et al./Communications Biology)
A calpeptina S é uma variação da calpeptina – molécula inibidora da calpaína, uma proteína que utiliza o cálcio do corpo humano para acelerar a quebra de moléculas de água, promovendo reações químicas. A calpeptina já vinha sendo estudada para tratamento de diversos cânceres e doenças crônicas.
“No caso da COVID-19, o diferencial em relação aos demais medicamentos já aprovados ou em estágio mais avançado de desenvolvimento é que a calpeptina não só ataca a Mpro [proteína importante para a replicação do coronavírus] como também atua com mais intensidade na catepsina-L, uma das formas de acesso do coronavírus às células humanas”, explicou à Assessoria de Imprensa do ICB-USP Edmarcia Elisa de Souza, pesquisadora do laboratório Unit for Drug Discovery, coordenado pelo professor Carsten Wrenger no Departamento de Parasitologia.
Como explica Souza, a catepsina-L é uma das proteases responsáveis pelo trabalho do lisossomo – organela que digere e elimina moléculas que não devem ser aproveitadas pela célula, como as moléculas do vírus, por exemplo. No entanto, no caso da COVID-19, o efeito é reverso. As partículas virais que entram na célula são processadas pela catepsina-L presente nos lisossomos, o que acaba por aumentar a liberação do vírus, espalhando-o pelas células. “Como a catepsina-L está pouco sujeita a mutações, diferentemente das proteínas do próprio SARS-CoV-2, isso aumenta o potencial inibitório do composto em comparação com os demais fármacos.”
Com base nos resultados dos testes com células Vero e humana, validados por ensaios genéticos e de microscopia de fluorescência, os pesquisadores estimam que a calpeptina S seja ainda mais potente no organismo humano.
Ainda segundo Souza, o composto não causou efeitos tóxicos nas células testadas. “Havia dúvida se a calpeptina poderia alterar a estrutura da catepsina-L e produzir efeitos que pudessem prejudicar a funcionalidade das células, mas essa hipótese foi descartada em nossos ensaios, o que explica por que o composto só se mostrou tóxico em doses muito maiores do que as necessárias para eliminar os vírus.”
Na próxima etapa da investigação, os pesquisadores pretendem avaliar se a calpeptina S mantém boa performance contra a variante ômicron – como se imagina que aconteça.
Projeto internacional
A calpeptina foi selecionada por pesquisadores alemães a partir de um estudo publicado em 2021 na revista Science. Entre 35 concorrentes, ela foi a molécula que obteve a melhor performance em uma triagem feita por meio de testes de cristalografia de raios X. No processo, a calpeptina foi fundida à proteína Mpro.
Apesar de apresentar bons resultados, a molécula permanecia por pouco tempo nos organismos, o que reduzia a sua eficácia. A partir disso, para potencializar a ação do fármaco, os pesquisadores desenvolveram uma nova molécula, a calpeptina S, que é fundida com uma molécula oriunda do enxofre. “Comparamos a calpeptina S com a calpeptina original no ICB e atestamos que a nova molécula foi efetiva para combater o vírus”, contou a pesquisadora.
Em seguida, foram feitos diversos ensaios enzimáticos e de cristalografia de raios X para avaliar com qual das sete variações de catepsinas (que existem no corpo humano e que são responsáveis pelo espalhamento do vírus nas células) a calpeptina S interagia melhor e como funcionaria a interação entre elas e a Mpro.
A investigação recebeu financiamento da FAPESP por meio de seis projetos (15/26722-8, 20/12277-0, 20/07251-2, 20/09149-0, 22/01812-8 e 21/02736-0) e foi feita em colaboração com pesquisadores da Universidade de Hamburgo e do Deutsches Elektronen-Synchrotron (DESY), ambos da Alemanha. Também participaram grupos de pesquisa dos departamentos de Biologia Celular e do Desenvolvimento e Microbiologia do ICB-USP.
O potencial do fármaco contra o SARS-CoV-2 foi identificado pelos cientistas alemães. Já os testes de validação da ação do composto contra o vírus em modelos animais e em células foram realizados no laboratório BSL3 Cell Culture Facility for Vector and Animal Research do ICB-USP, que tem nível três de biossegurança (NB3).
A célula humana foi cedida pelo Laboratório de Biologia Celular e Molecular, coordenado pela professora Glaucia Maria Machado-Santelli https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/5338/glaucia-maria-machado-santelli, do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento; os vírus foram fornecidos pelo Laboratório de Virologia Clínica e Molecular, coordenado pelo professor Edison Durigon, docente da Microbiologia; e os ensaios em animais foram feitos em conjunto com o Laboratório de Pesquisa Aplicada a Micobactérias (LaPam), coordenado pela professora Ana Marcia de Sá Guimarães, também da Microbiologia.
O artigo Calpeptin is a potent cathepsin inhibitor and drug candidate for SARS-CoV-2 infections pode ser lido em: www.nature.com/articles/s42003-023-05317-9#Fun.
Matéria – Agência FAPESP