Autor: Dr. Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues
Vivemos uma era de diagnósticos rápidos, frequentemente baseados em checklists de comportamento e não em compreensão profunda das bases biológicas envolvidas. A fronteira entre a Síndrome de Ehlers-Danlos, especialmente em sua forma leve, e o Transtorno do Espectro Autista, ilustra com clareza os riscos dessa superficialidade clínica. São dois quadros distintos na etiologia, mas com pontos de convergência notáveis em seus efeitos perceptíveis. E é exatamente nessa sobreposição que surgem dúvidas legítimas sobre o que é, de fato, autismo — e o que apenas se parece com ele.
Recentemente, um caso emblemático trouxe essa questão à tona. Uma pessoa que apresentava sinais comportamentais associados ao autismo teve sua predisposição genética revelada por meio de um perfil genético avançado, o GIP. A análise indicava uma variante leve da Síndrome de Ehlers-Danlos. A partir dessa descoberta, um olhar mais atento sobre sua trajetória revelou que sintomas como fadiga, hipersensibilidade sensorial, retraimento social e dor musculoesquelética não eram manifestações clássicas do espectro autista, mas sim expressões indiretas de uma disfunção no tecido conjuntivo.
A semelhança entre as manifestações clínicas da SED leve e do autismo não é acidental. O tecido conjuntivo, ao afetar a estabilidade estrutural da matriz extracelular cerebral, influencia diretamente a forma como o cérebro se organiza. Esse impacto pode repercutir na conectividade sináptica, na mielinização e na regulação neuroquímica. Em outras palavras, um colágeno instável pode comprometer o funcionamento de circuitos cerebrais essenciais, como os que envolvem o córtex pré-frontal, o cerebelo, a ínsula e a amígdala. Essas alterações, mesmo que sutis, já são suficientes para produzir sintomas comportamentais que se confundem com traços autistas.
Esse é o ponto central da discussão: o comportamento é apenas a ponta visível de um iceberg biológico. Diagnosticar autismo exclusivamente com base em comportamento é correr o risco de ignorar causas subjacentes que demandam outra abordagem clínica e terapêutica. Em muitos casos, a SED leve funciona como uma espécie de fenocópia, isto é, uma condição que imita o autismo sem, de fato, ter a mesma origem. A criança que evita o toque por hipersensibilidade tátil não está necessariamente expressando um déficit de interação social típico do autismo, mas uma resposta adaptativa à dor e ao desconforto. O adulto que prefere rotinas rígidas pode estar tentando evitar gatilhos de dor ou fadiga, e não reproduzindo padrões cognitivos fixos característicos do TEA.
Por outro lado, é preciso reconhecer que as duas condições também podem coexistir. A genética é fluida, e o organismo pode carregar mutações em genes relacionados tanto à formação do colágeno quanto à organização sináptica. A biologia não respeita as categorias estanques que a medicina criou para facilitar a classificação. A realidade é mais difusa, e os cérebros atípicos nem sempre seguem manuais.
O desafio está em não rotular apressadamente. O diagnóstico é, por definição, uma hipótese fundamentada, e não uma sentença definitiva. Quando se compreende que uma síndrome genética pode repercutir sobre o neurodesenvolvimento, entende-se que nem tudo o que parece autismo é de fato autismo. E mais importante ainda: o sujeito que apresenta esses sintomas merece uma análise mais ampla do que aquela baseada exclusivamente em critérios comportamentais.
Esse é o chamado para uma nova medicina da mente. Uma medicina que entenda que a dor pode modelar o comportamento, que o colágeno pode influenciar o cérebro, que o diagnóstico não deve ser um fim, mas o início de uma compreensão. Porque, em última instância, diagnosticar é nomear uma causa — e não apenas descrever um efeito.