O cérebro humano é feito de 86 bilhões de neurônios, células que transmitem sinais elétricos e químicos que garantem as funções cerebrais. Mas eles não atuam sozinhos: o órgão também conta com as células da glia, estruturas do sistema nervoso central com papel de dar suporte e proteção aos neurônios. Entre elas, estão os astrócitos, que fornecem nutrientes do sangue para os neurônios – e que podem, no futuro, viabilizar um tratamento para a doença de Alzheimer.
É o que sugere a pesquisa do neurocientista brasileiro Eduardo Zimmer, professor de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Por muito tempo, a gente teve essa ideia de que tudo o que acontece de errado no cérebro é porque o neurônio não consegue fazer a sinase”, explica o pesquisador, em entrevista à GALILEU. “Mas, se nas regiões do cérebro que mais atrofiam existem mais astrócitos, será que o problema não pode ser nesse outro tipo de célula? É isso que meu grupo vem investigando nos últimos anos.”
O Alzheimer é a doença neurodegenerativa mais comum que existe, e responde por 70% dos casos de demência no mundo. Atualmente, cerca de 55 milhões de pessoas convivem com algum tipo de demência, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). ”Uma em cada nove pessoas com mais de 65 anos tem ou vai desenvolver Alzheimer. Acima de 85, é uma em cada três pessoas. E a expectativa de vida está aumentando cada vez mais”, destaca Zimmer. Sabe-se que a doença provoca o acúmulo de emaranhados de proteínas no cérebro, que prejudicam as sinapses e matam células cerebrais. Aos poucos, isso afeta a memória, a cognição, o comportamento e a capacidade de fazer atividades diárias.
“É como se o cérebro ficasse cheio de pedrinhas que, quando se acumulam, fazem as sinapses pararem de funcionar direito”, explica. Ao analisar exames de neuroimagem de pacientes com a doença, a equipe de Zimmer identificou que, além de participarem das sinapses, os astrócitos percebem a presença dessas “pedrinhas”. Com isso, aumentam de tamanho para tentar eliminá-las e, assim, proteger o cérebro. Conforme a doença progride, seu tamanho diminui – e aí começa a fase final, a de demência. “O astrócito acompanha a doença”, resume o pesquisador.
As pesquisas sobre astrócitos renderam a Zimmer, em 2024, uma premiação que destaca estudos que aumentam a compreensão sobre o Alzheimer, o Blas Frangione Early Career Achievement Award. O prêmio se junta à coleção vasta de medalhas acadêmicas do cientista, que é doutor em bioquímica também pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor visitante da Universidade McGill (Canadá), ele venceu um prêmio Capes de Tese e, em 2021, foi um dos autores de um “artigo de consenso” sobre o mecanismo cerebral por trás do Alzheimer, publicado na revista Nature Neuroscience. É “o ponto mais alto da carreira de um pesquisador em sua área específica”, diz Zimmer. Desde 2019, é apoiado pelo Instituto Serrapilheira. Em entrevista à GALILEU, o pesquisador detalha os estudos sobre Alzheimer e demais doenças degenerativas do cérebro. Ele fala também sobre os avanços em diagnóstico e tratamento, e a importância de cientistas de países fora da América do Norte e Europa atuarem na área.
Qual a diferença do Alzheimer para as outras doenças degenerativas?
Parkinson e Huntington são a segunda e terceira mais comuns. Também são doenças que envolvem emaranhados de proteínas que se formam em outros pontos do cérebro. O lugar do cérebro que esses agregados se formam normalmente explica o sintoma da doença. Na doença de Alzheimer, esses grumos estão em regiões ligadas à memória. Na doença de Parkinson, eles se acumulam em regiões associadas à função motora. Por isso é que a pessoa começa a ter tremores.
O foco de sua pesquisa está nos astrócitos. qual o papel dessas células nas doenças neurodegenerativas?
Todo mundo pensa no neurônio como a unidade funcional do cérebro. Mas minha pesquisa foca no astrócito, que é uma célula da glia. Há três tipos de células da glia: microglia, poligodendrose e astrócito. E as regiões do cérebro humano que são mais evoluídas e que mais atrofiam no envelhecimento (e pela ação de doenças do cérebro), têm mais células da glia do que neurônios. Imagine que um neurônio converse com o outro através da sinapse. Um neurônio manda informação, outro recebe. Mas, descobrimos, ao longo dos anos, que há um terceiro componente, o astrócito, que tem a função de encerrar essa comunicação para não gastar energia e não deixar o neurônio ficar passando informação desnecessária. É um conceito chamado de sinapse tripartite, que ocorre com a grande maioria das sinapses excitatórias e inibitórias. Por isso o astrócito é tão importante. Ele atua na comunicação. Além disso, tem uma localização privilegiada, pois fica conectado com o vaso sanguíneo. Então, ele pega os nutrientes que vêm do sangue, da nossa alimentação, metaboliza e envia para o neurônio.
Como vocês perceberam a importância dos astrócitos?
Existe um exame de imagem que usa um contraste radioativo para avaliar se o cérebro está funcionando. Nesse exame, a gente coloca um radioisótopo, uma molécula que emite radiação, conectada em uma molécula de glicose, que é a principal fonte de energia do cérebro. A partir do momento em que o cérebro consome essa glicose, é possível ver se ele está funcionando bem ou mal. No caso do paciente de Alzheimer, ele tem uma região específica do cérebro que consome menos glicose. A questão é que, desde 1977, quando esse exame começou a ter uma interpretação biológica, acreditava-se que o sinal do radioisótopo serviria como um medidor de atividade dos neurônios. Mas os anos foram passando, e começou a ficar claro que a célula que mais consome glicose é o astrócito. Então, essa interpretação biológica não estava 100% correta. Em 2017, eu e minha equipe propusemos um desafio: fazer um exame desses de imagem antes e depois de ativar os astrócitos. E o que aconteceu? Aumentou o sinal do exame. Pela primeira vez, conseguimos mostrar que aquele exame, até então usado como marcador de atividade dos neurônios, na verdade também responde à atividade dos astrócitos. A partir daí, o consenso atual é de que esse exame de imagem, que mede o consumo de glicose no cérebro a nível biológico, indica o consumo de glicose pelos neurônios e pelos astrócitos. Por isso, fui convidado para participar do trabalho da Nature Neuroscience. Fui o único brasileiro entre 82 autores.
Então, quando a gente fala em Alzheimer, os astrócitos têm um papel tão fundamental quanto os neurônios?
Existem duas proteínas que formam agregados insolúveis no cérebro: a beta-amilóide e a tau. É como se o órgão ficasse cheio de pedrinhas que, quando se acumulam, fazem as sinapses pararem de funcionar direito. Aí, o cérebro começa a atrofiar e a ter neurodegeneração. Isso se reflete em perda cognitiva e de funções. A pessoa deixa de conseguir viver sozinha, precisa de alguém que cuide dela. Esse é o padrão contínuo da doença de Alzheimer. O astrócito, além de estar nas sinapses, tem outro papel: quando ele começa a enxergar essas pedrinhas atrapalhando as sinapses, ele se torna reativo, aumenta de tamanho e começa a proteger o cérebro. Esse é o tema do artigo de consenso da Nature Neuroscience. Conforme a doença vai progredindo e o astrócito vê que não consegue tirar aquelas pedrinhas dali, ele acaba ficando exausto, e diminui de tamanho.É esse o momento da fase de demência do Alzheimer, em que a pessoa está nos estágios finais da doença. Então, o astrócito acompanha a doença.
E, atualmente, é muito legal que a gente tenha um exame de sangue, que está sendo desenvolvido no mundo todo e começando a ser validado, que consegue identificar se o astrócito está reativo ou não. Quando o astrócito fica reativo, ele produz uma proteína chamada GFAP, que começa a vazar para o vaso sanguíneo. Assim, é possível tirar uma amostra de sangue e ver o nível de GFAP no sangue. Se está aumentado, identificamos que naquele cérebro os astrócitos estão reativos. Ele se torna, então, um biomarcador da doença.
“Um neurônio manda informação, outro recebe. Mas há um terceiro componente, o astrócito, que tem a função de encerrar essa comunicação para não gastar energia”.
— Sobre a atuação dos astrócitos, tipo de céula do cérebro diretamente ligada ao processo de envelhecimento
O que são esses biomarcadores? Qual o papel deles na identificação precoce de demência?
Como você sabe que você está com diabetes? Faz o exame de sangue e vê a glicose. A glicose é um biomarcador. Como você sabe que tem hipertensão? Medindo a pressão. Em um diagnóstico, são moléculas, marcadores e parâmetros mensuráveis que indicam se a gente tem ou não uma doença. Pensando nas duas proteínas, beta-amilóide e tau, se eu consigo detectar que elas estão em nível acima do esperado, consigo biologicamente identificar que um indivíduo tem a doença de Alzheimer.
Não existe outra patologia que provoque esse aumento?
A beta-amilóide é específica da doença de Alzheimer. Existem outras patologias que têm a tau também. A alfa-sinucleína é específica da doença de Parkinson e da doença de Corpúsculos de Lewy [outra forma de demência]. Essas “pedrinhas” no cérebro, nas doenças neurodegenerativas, cada doença tem a sua. A doença de Huntington tem Huntingtina. Então, se você identifica essa pedrinha vazando do cérebro para o sangue, você consegue identificar qual é a doença do indivíduo. Como conseguimos medir essas proteínas do cérebro, seja por exame de imagem ou de fluido, estamos entrando em uma fase em que já é possível identificar a patologia antes dos sintomas. A ideia é conseguir identificar [o Alzheimer] até 20 anos antes do primeiro sintoma. É o que chamamos de doença de Alzheimer pré-clínica. Não é nenhuma novidade na medicina. Você já deve ter ouvido falar de pré-diabetes ou pré-hipertensão. São fases pré-clínicas, assintomáticas, em que as pessoas começam a ter a patologia mas ainda não têm sintomas. Mas, agora, começou a virar realidade para a doença de Alzheimer.
Quais outros avanços você considera mais significativos para compreensão dessas doenças?
A primeira vez que a gente conseguiu identificar a proteína beta-amiloide no cérebro com um exame de imagem foi em 2004. Vinte anos atrás. A primeira vez que a gente viu exames de sangue tão bons quanto os exames de imagem foi em 2020. Quatro anos atrás. São avanços muito recentes, de estudos majoritariamente conduzidos na América do Norte e na Europa. Então, agora é o momento de começar a conduzir esses estudos no Brasil. Afinal, quando desenvolvemos um exame de sangue, precisamos de valores de referência. Qual é a primeira coisa que você faz quando pega um exame? Olha a sua medida de glicose e vai pro lado direito [para] ver se [o número] está dentro da normalidade. Todo mundo já fez isso. Então, o momento atual no Brasil e no sul do mundo é o de definir esses valores de referência para os biomarcadores do Alzheimer.
“A ideia é conseguir identificar [o Alzheimer] até 20 anos antes do primeiro sintoma. É o que chamamos de doença de Alzheimer pré-clínica”.
— Em fala sobre como a análise do acúmulo de proteínas específicas em certas regiões cerebrais pode facilitar o diagnóstico precoce
Em países do norte global isso já foi definido?
Lá os estudos já são muito maiores. Já se tem uma ideia do que são esses valores. No Brasil, ainda não sabemos se esses exames se comportam da mesma maneira.
Quais as inovações que demonstraram maior potencial na prevenção e tratamento do Alzheimer?
Temos alguns fármacos sendo usados para tratar a doença de Alzheimer, já há um bom tempo, que tentam melhorar as sinapses. Recentemente, questão de um, dois anos atrás, foram aprovadas as primeiras vacinas que tiram os grumos do cérebro, lá nos Estados Unidos. Entretanto, elas não parecem ter grande efeito na cognição dos pacientes. Mesmo removendo os grumos depois que o paciente já tem sintomas, parece que o efeito não é tão benéfico. O que se tem sugerido? Que, na verdade, o ideal seria remover os grumos antes que a pessoa tenha sintomas. Porque, depois que o neurônio morre, talvez a gente não consiga recuperar essas memórias.
Então, essa questão de fármaco neuroprotetor que impede que a doença progrida é uma coisa que a literatura está tentando definir. Mas o que é muito legal, tem ganhado muita força e faz muito sentido num país que nem o Brasil, são os fatores de risco modificáveis. Se identificamos antes que o paciente tem Alzheimer pré-clínico, ou seja, tem os grumos no cérebro, podemos utilizar estratégias, seja com remédios ou não, para tentar impedir que uma pessoa desenvolva a doença. Até 45% dos casos podem ser prevenidos, quase um em cada dois.
E quais fatores de risco são esses?
O primeiro fator, no início da vida, é a educação formal. Quem não tem educação no início da vida tem mais chances de desenvolver a doença. Depois, na vida adulta: perda auditiva, altos níveis de LDL, que é o colesterol ruim, depressão, trauma cranioencefálico, concussão, sedentarismo, diabetes, tabagismo, hipertensão, obesidade, alcoolismo. Poluição e perda de visão também. São todos os fatores que, se evitados, reduzem esse risco. E, no final da vida, temos fatores como o isolamento social. É muito maléfico para o idoso ficar isolado socialmente. Então, se alguém na vida adulta testa positivo para placas de beta-amilóide, ele não pode ser sedentário. Não pode ser diabético, não pode ser hipertenso. Porque tudo isso vai acelerar o desenvolvimento da fase clínica.
“Falta de educação na infância. Perda de audição, colesterol alto, depressão, diabetes, tabagismo, obesidade, alcoolismo. Isolamento, poluição e cegueira”.
— Lista de fatores de risco que aumentam chance de Alzheimer, segundo Zimmer
Por se tratar do mesmo órgão, o cérebro, os fatores de risco do Alzheimer também valem para as outras doenças neurodegenerativas?
A maioria deles mostra que, para uma saúde cerebral, temos que ter uma saúde global. Esses fatores sociodemográficos e ambientais contribuem muito para doenças neurodegenerativas e transtornos neuropsiquiátricos.
Uma vez que a pessoa já está com Alzheimer avançado, é possível recuperar as memórias?
Atualmente, não. Por isso, a ideia é sempre a prevenção. Se a gente pensar que os neurônios morrem, junto deles morrem nossas memórias. Fica bastante difícil de recuperar. Agora, pensarmos que os neurônios estão vivos, só não estão conseguindo funcionar direito, pode ser que seja possível recuperar a memória. Mas essa é uma informação que ainda não temos. Só conseguimos melhorar os sintomas, mas, depois que o indivíduo chega à fase de demência, não é possível fazer ele recuperar memórias. Por isso é tão importante avançarmos em pesquisas: se pararmos para pensar, nós somos as nossas memórias. Se não temos memória, não sabemos quem somos.
Só sabemos quem amamos porque temos memória. Então, uma doença que tira as nossas memórias é uma doença que rouba o nosso ‘eu’. Por isso, meu propósito de vida é fazer as pessoas, quando envelhecerem, levarem as suas memórias da vida toda. É injusto uma pessoa terminar a vida sem lembrar dos momentos bonitos que viveu.
“Se pensarmos que os neurônios estão vivos, só não estão conseguindo funcionar direito, pode ser que seja possível recuperar a memória”.
— Sobre as chances de, um dia, ser possível retomar memórias perdidas
O que ainda falta entender sobre como o envelhecimento afeta o nosso cérebro?
Precisamos entender melhor a função dos astrócitos. Imagina a possibilidade de o neurônio não estar conseguindo funcionar porque o astrócito não está levando nutrição adequada pra ele? Daqui a pouco, conseguiremos ativar o astrócito para ele voltar a levar esse alimento para o neurônio, e o neurônio voltar a se comunicar, fazer sinapses, e as memórias voltarem. Essa seria uma hipótese se a gente conseguisse entender exatamente como essas interações entre neurônios e astrócitos ou entre alguma outra célula ocorrem no cérebro. Os fármacos atuais focam ou em neurônios, ou nos grumos insolúveis do cérebro. E eles não têm o efeito esperado. Pode ser que a gente esteja olhando para a célula errada.
No seu agradecimento pelo prêmio da Alzheimer’s Association, você destacou a importância de “democratizar a ciência”. Por que isso é importante para os estudos sobre envelhecimento?
Não existe saúde cerebral e global sem haver uma conexão entre o que acontece no norte global e no sul global. Sabemos muito sobre cérebro, sobre Alzheimer, mas a grande maioria do conhecimento é baseada em estudos desenvolvidos no norte global. Sabemos muito pouco do cérebro do brasileiro, do cérebro do africano. E, certamente, os cérebros são diferentes, porque é um órgão muito plástico, que responde muito ao ambiente. Então, para conseguir entender essas doenças a nível global, precisamos democratizar a ciência. Precisamos entender o que é o cérebro no latino-americano. Existem estudos que mostram que o cérebro do latino-americano parece envelhecer mais rápido do que o cérebro do norte-americano, por exemplo. Afinal, nosso ambiente é mais estressor do que o dos países de alta renda. E é assim que funciona, basicamente, no sul global. O pessoal não tem um dia de folga, tem mais poluição, tem mais estressores. Isso faz o cérebro ser diferente. Logo, se não democratizarmos a ciência, estaremos fadados a não entender essa doença.
Matéria – Revista Galileu, Por Marília Marasciulo
Imagem – Eduardo Zimmer, professor de Farmacologia na UFRGS, se dedica a investigar os impactos do processo de envelhecimento no cérebro- e a relação disso com doenças degenerativas, como o Alzheimer. — Foto: Galileu