Os resultados do estudo DISCOVER, que analisou o tratamento de pessoas com diabetes tipo 2 em 38 países, evidenciam a predominância de baixos níveis de controle glicêmico no início da terapia de segunda linha.
Na pesquisa conduzida por pesquisadores do Reino Unido e colaboradores de várias partes do mundo, o nível médio de hemoglobina glicada (HbA1c) dos participantes foi de 8,3%; valor acima do indicado como ideal na maioria das diretrizes clínicas, que em geral preconizam um HbA1c < 7,0% ou ≤ 6,5%.
A edição de janeiro do periódico Diabetes, Obesity and Metabolism mostra que o cenário também é preocupante no Brasil – o país está entre os 19 países analisados no estudo – onde mais de 25% dos pacientes iniciam o tratamento de segunda linha com HbA1c ≥ 9,0%.
O programa DISCOVER foi uma iniciativa da farmacêutica AstraZeneca mundial, que buscou descrever a condução clínica do diabetes tipo 2 em diferentes países, e os resultados associados observados em pacientes iniciando a terapia de segunda linha.
A pesquisa incluiu dados de dois estudos observacionais prospectivos (NCT02322762 e NCT02226822), somando mais de 15.000 pacientes da África (África do Sul e Argélia), das Américas (Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, México e Panamá), do Sudeste Asiático (Índia e Indonésia), da Europa (Áustria, Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Itália, Noruega, Polônia, República Tcheca, Rússia, Suécia e Turquia), do Mediterrâneo Oriental (Arábia Saudita, Bahrain, Egito, Emirados Árabes, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã e Tunísia) e da região do Pacífico Ocidental (Austrália, Coreia do Sul, China, Japão, Malásia e Taiwan).
A Dra. Marília Brito Gomes, endocrinologista, professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e uma das colaboradoras do estudo DISCOVER, falou ao Medscape sobre o trabalho.
A maioria dos participantes (56%) era homem, e a média de idade foi de 57,7 anos. O valor médio do índice de massa corporal (IMC) foi de 29,4 kg/m2 e o tempo médio transcorrido desde o diagnóstico de diabetes foi de 5,7 anos. A mudança da terapia ocorreu predominantemente em função da ausência de eficácia da terapia de primeira linha.
Comparando as regiões, os pesquisadores identificaram que os níveis médios de HbA1c no início da terapia de segunda linha eram maiores na região do Mediterrâneo Oriental (8,7%) e menores na região do Pacífico Ocidental (7,9%).
De maneira geral, apenas 17,4% dos participantes iniciaram a terapia de segunda linha com HbA1c < 7,0%. A África, o Sudeste Asiático e a região do Mediterrâneo Oriental foram as localidades com as menores proporções de pacientes com HbA1c < 7,0%, enquanto a Europa e a região do Pacífico Ocidental apresentaram as maiores proporções. Em contrapartida, o Sudeste Asiático e a região do Mediterrâneo Oriental tiveram mais pacientes iniciando a terapia de segunda linha com HbA1c ≥ 9,0%.
O registro de níveis de HbA1c > 8,0% no início da terapia de segunda linha foi associado a um baixo nível educacional, a países de baixa renda e a maior tempo transcorrido desde o diagnóstico de diabetes. Ser do sexo masculino, tabagista, ter hipertensão, não tomar estatinas, fazer uso de sulfonilureia em monoterapia, e sulfonilureia ou inibidor de DPP-4 + metformina ou outra combinação de dois medicamentos (ou mais) como terapia de primeira linha também foram fatores associados a um controle glicêmico ruim.
Segundo a Dra. Marília, no diabetes tipo 2 ocorre uma progressão da disfunção das células beta, portanto, é esperada uma piora dos níveis de HbA1c nos pacientes; no entanto, ela destacou que, atualmente, se busca intervir antes que esse agravamento ocorra.
“Se no início da terapia de primeira linha o paciente apresentar HbA1c = 7,1% e, após três meses, retornar com 7,8%, já é necessário começar a segunda linha de tratamento”, explicou. Mas, de acordo com os resultados do estudo DISCOVER, não é isso que vem ocorrendo na prática clínica.
“Percebemos que há um retardo no início da terapia de segunda linha, e isso se dá por vários motivos”, afirmou.
A renda do país aparece como um fator importante nesse contexto. “O produto interno bruto (PIB) dos países faz muita diferença, pois interfere na forma como o sistema público de saúde disponibiliza acesso à terapia para os pacientes. Na África, por exemplo, só estão disponíveis na rede pública metformina e sulfonilureia, ou seja, em países muito pobres não podemos prescrever inibidores do cotransportador sódio-glicose 2 (SGLT2, sigla do inglês, Sodium Glucose Co-Transporter 2 ), porque os pacientes não terão como adquirir o medicamento. Na Índia, por sua vez, o sistema público de saúde não disponibiliza medicamentos, o paciente precisa comprar e, na maioria das vezes, a pessoa não tem dinheiro”, disse a professora, lembrando que, no Brasil, a situação também está longe da ideal.
“No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) também disponibiliza apenas sulfonilureia e metformina para os pacientes, e para obter outros medicamentos gratuitamente é necessário recorrer à Justiça. Quando o paciente consegue um parecer favorável, obtêm medicamentos para seis meses de tratamento, mas, quando o remédio acaba, precisam acionar a Justiça novamente, o que gera descontinuidade da medicação, pois, na falta da terapia mais moderna, o paciente volta a utilizar a medicação antiga até conseguir outra vez a nova por decisão judicial”, explicou.
A metformina, segundo a pesquisadora, é extremamente eficaz, mas está associada a alguns eventos adversos, entre eles, diarreia, flatulência e mal-estar gástrico. “Esses eventos adversos contribuem para que de 10% a 20% dos pacientes abandonem o tratamento, o que faz com que seja necessário mudar a droga ou incluir outra medicação. Com relação à sulfonilureia, o que é muito comum é a hipoglicemia e o ganho ponderal, dois eventos que muitas vezes também levam o médico a trocar a terapia”, explicou.
De maneira geral, a baixa adesão à terapia para controle do diabetes é um problema em todo o mundo e, segundo a pesquisadora, tende a ser maior quando há baixa escolaridade, pouco conhecimento sobre o tratamento e um intervalo grande entre as consultas.
Para a Dra. Marília, outro fator que merece atenção é o nível de especialização do médico. “Na Inglaterra, por exemplo, a maioria dos pacientes com diabetes tipo 2 é atendida por médicos generalistas e não por especialistas. Os pacientes só são encaminhados para um especialista se tiverem alguma complicação ou iniciarem a insulinoterapia. Na maioria dos países, os pacientes em uso de metformina são atendidos na clínica geral, o que pode fazer com que haja retardo no início da segunda linha terapêutica”, ponderou.
Devido a esses fatores, a endocrinologista relatou que já esperava que países desenvolvidos, com maior renda e escolaridade tivessem uma proporção maior de pacientes com HbA1c ≤ 7,0%. Pela mesma razão, a Dra. Marília também esperava que os resultados do Brasil não fossem os ideais. O fato de o Brasil ter ficado entre os 19 países nos quais mais de 25% dos pacientes iniciam o tratamento de segunda linha com HbA1c > 9,0% não surpreendeu a Dra. Marília, visto que o controle glicêmico ruim no país já vem sendo evidenciado em estudos anteriores.
“Isso não ocorre apenas no controle do diabetes tipo 2, ocorre também no diabetes tipo 1. Fiz um trabalho sobre diabetes tipo 1 nacional em todas as regiões do Brasil e só 13% a 15% dos nossos pacientes tinham HbA1c < 7,0%, portanto, o controle glicêmico inadequado em pacientes com diabetes tipo 2 era um resultado esperado”, destacou.
Com informações de Medscape.