Trauma na infância e psicopatia: uma análise meta-analítica da sua relação etiológica

A psicopatia é um transtorno de personalidade complexo, caracterizado por traços que se agrupam em quatro facetas: afetiva (insensibilidade), interpessoal (grandiosidade), instabilidade comportamental (impulsividade) e desvio social (delinquência). O debate sobre a etiologia da psicopatia tem se expandido para além das teorias puramente genéticas, incluindo a investigação do papel de traumas na infância, como o maus-tratos.

Uma meta-análise recente, que sintetizou dados de 47 estudos e 12.737 participantes, teve como objetivo esclarecer a associação entre quatro tipos de maus-tratos infantis (abuso físico, abuso emocional, negligência e abuso sexual) e as facetas da psicopatia. Os resultados indicaram uma ligação significativa e de tamanho moderado entre a psicopatia em geral e o abuso físico, abuso emocional e negligência na infância, bem como com o conceito geral de maus-tratos infantis. A associação com o abuso sexual foi pequena, mas ainda estatisticamente significativa. É importante notar que essas associações foram mais fortes para as facetas comportamentais e antissociais da psicopatia do que para as facetas afetivas e interpessoais, embora quase todas as associações fossem significativas.

Esses achados apoiam teorias recentes que sugerem um papel para o trauma complexo no desenvolvimento de transtornos de personalidade graves, como a psicopatia. O trauma complexo, definido como a exposição a estressores traumáticos na infância ou em contextos que comprometem o vínculo seguro com os cuidadores, pode levar o indivíduo a um “modo de sobrevivência”, resultando em alterações nos mecanismos de autorregulação. A negligência, em particular, mostrou uma forte correlação com a psicopatia, reforçando a ideia de que a ausência de cuidado e responsividade parental pode ser um fator etiológico importante.

Uma limitação significativa da pesquisa é a dependência de relatos retrospectivos de maus-tratos na infância, que podem ser afetados por viés de memória. A grande maioria dos estudos incluídos nesta meta-análise utilizou amostras de indivíduos clínicos e correcionais, em vez de amostras da comunidade em geral, e a maioria dos participantes era do sexo masculino, o que pode limitar a generalização dos resultados. A meta-análise não encontrou evidências de que o gênero modere a relação entre maus-tratos infantis e psicopatia. No entanto, a relação foi mais forte em amostras da comunidade do que em amostras clínicas e correcionais.

Apesar dessas limitações, os resultados fornecem suporte para a hipótese de trauma-psicopatia e sugerem que terapias focadas em traumas podem ser uma via promissora. Um estudo de caso notável mostrou que a terapia focada em esquemas em um paciente com traços psicopáticos, que havia sofrido abuso físico e emocional extremo na infância, resultou em uma redução significativa nas pontuações da
Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R), com a maior mudança ocorrendo na faceta afetiva e interpessoal. Este achado, embora de um único caso, desafia a noção de que as características afetivas e interpessoais da psicopatia são imutáveis. Pesquisas futuras precisam usar desenhos longitudinais e prospectivos para estabelecer relações causais de forma mais robusta.

Referência:
DE RUITER, C. et al. A Meta-Analysis of Childhood Maltreatment in Relation to Psychopathic Traits. Preprint, 2021.

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