Quando o cérebro queima a própria proteção: a mielina como reserva energética em situações extremas

Um estudo recentemente publicado na revista Nature Metabolism revela um mecanismo surpreendente de adaptação cerebral: em situações de extrema exigência energética, como durante maratonas, o cérebro pode recorrer à própria gordura estrutural — especificamente à mielina — como fonte temporária de energia.

Por: Dr. Fabiano de Abreu Agrela

Durante décadas, a neurociência sustentou que o cérebro humano depende quase exclusivamente da glicose para manter seu funcionamento. Essa premissa, embora correta em condições fisiológicas habituais, começa a ser refinada à luz de novas evidências experimentais. Um estudo recentemente publicado na revista Nature Metabolism revela um mecanismo surpreendente de adaptação cerebral: em situações de extrema exigência energética, como durante maratonas, o cérebro pode recorrer à própria gordura estrutural — especificamente à mielina — como fonte temporária de energia.

A mielina é uma substância lipídica altamente especializada que reveste os axônios dos neurônios, permitindo a condução rápida e eficiente dos impulsos elétricos. Produzida pelos oligodendrócitos, ela é fundamental para a integridade funcional do sistema nervoso central, estando particularmente concentrada em regiões ligadas ao controle motor, à integração sensorial e à regulação emocional. Qualquer alteração nesse revestimento sempre foi associada, tradicionalmente, a processos patológicos, como ocorre na esclerose múltipla. No entanto, o estudo em questão propõe uma interpretação radicalmente diferente em contextos específicos.

A pesquisa analisou dez maratonistas por meio de exames de ressonância magnética realizados antes e após a prova. Entre 24 e 48 horas depois da corrida, observou-se uma redução significativa nos marcadores de mielina em determinadas regiões cerebrais. Importante destacar que essa perda foi classificada como leve e reversível, com recuperação progressiva ao longo de semanas, podendo chegar a até dois meses. Os autores denominaram esse fenômeno de “plasticidade metabólica da mielina”, sugerindo tratar-se de uma adaptação funcional, e não de um dano estrutural permanente.

Do ponto de vista metabólico, esses achados dialogam com descobertas experimentais anteriores que demonstram a capacidade do cérebro de utilizar corpos cetônicos em cenários de privação de glicose. A novidade reside no fato de que, diante de uma demanda energética extrema e prolongada, o próprio tecido cerebral pode fornecer lipídios estruturais como fonte emergencial de energia. Evidências publicadas em periódicos como Cell Metabolism e Neuron já indicavam que oligodendrócitos participam ativamente do suporte energético neuronal, o que reforça a plausibilidade desse mecanismo.

Essa capacidade adaptativa pode ser compreendida à luz da evolução. Durante longas jornadas de caça ou migração, nossos ancestrais frequentemente enfrentavam períodos prolongados sem ingestão adequada de carboidratos. A manutenção da função cerebral, mesmo sob estresse metabólico intenso, teria sido crucial para a sobrevivência. A possibilidade de mobilizar temporariamente a mielina como reserva energética sugere uma estratégia sofisticada de preservação funcional, ainda que a um custo transitório.

Do ponto de vista prático, os resultados não indicam que exercícios de longa duração sejam prejudiciais ao cérebro. Pelo contrário, reforçam a impressionante capacidade de adaptação do sistema nervoso humano. No entanto, também levantam reflexões importantes sobre recuperação adequada, nutrição e monitoramento em atletas de endurance, especialmente no que se refere ao equilíbrio energético cerebral.

 

O cérebro, longe de ser um órgão metabolicamente rígido, revela-se mais flexível e resiliente do que se imaginava. A mielina, tradicionalmente vista apenas como proteção e isolamento, passa a ser compreendida também como um recurso estratégico em situações extremas. Essa descoberta amplia nossa compreensão sobre os limites da plasticidade cerebral e reforça uma ideia central da neurociência contemporânea: o cérebro não apenas pensa, ele se adapta — até mesmo quando precisa consumir parte de si para continuar funcionando.