PCR: descubra como uma bactéria aquática deu origem a um dos diagnósticos mais eficientes do mundo

Criada na década de 1980, a PCR foi otimizada graças a uma bactéria de fontes termais; técnica possui diversas outras funções, para além do diagnóstico de doenças

Nos anos 1960, uma bactéria extremamente resistente foi descoberta dentro das fontes termais do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos: a Thermus aquaticus. Naquele momento, não se sabia a importância que o microrganismo viria a ter na história da ciência – mais precisamente, uma enzima produzida por ele, a Taq polimerase. Mas foi essa proteína que, 20 anos depois, possibilitou aprimorar um dos métodos de diagnóstico mais rápidos e eficientes do mundo: a PCR (sigla em inglês de Reação em Cadeia da Polimerase). Não à toa, a revista Science a considerou a “molécula do ano” em 1989.

A técnica de PCR foi criada em 1983 pelo cientista norte-americano Kary Mullis. Na época, já se sabia que os seres vivos eram capazes de criar cópias de seu próprio DNA usando uma enzima chamada DNA polimerase. O DNA é uma molécula longa formada por duas fitas, conectadas por pequenos pares de moléculas chamadas nucleotídeos, que abrigam uma sequência genética. A duplicação do DNA é essencial para a vida, promovendo desde a cicatrização de um corte na pele até a formação de novas células e o crescimento dos organismos.

A PCR foi a tentativa de reproduzir essa atividade dentro do laboratório, usando a DNA polimerase para fazer uma reação em cadeia e criar múltiplas cópias de uma amostra de material genético, como se estivesse copiando as páginas de um livro. O problema é que a polimerase usada no passado era extraída da E. coli, uma bactéria frequentemente estudada nos laboratórios, mas que apresentava uma importante limitação, como conta o pesquisador científico do Laboratório de Bacteriologia do Instituto Butantan, Enéas de Carvalho.

“A enzima de E. coli não aguentava a alta temperatura necessária para conduzir a técnica e se degradava, exigindo que a cada ciclo fosse adicionada uma nova quantidade de enzima. A reação tinha que ser interrompida e reiniciada várias vezes, além de ser um processo totalmente manual – era preciso ficar colocando e tirando a amostra de banhos-maria”, explica.

A solução, curiosamente, estava presente na bactéria Thermus aquaticus: por viver em águas que atingiam temperaturas acima de 80°C, esse microrganismo é muito resistente ao calor – o que significa que a sua enzima também é. Apelidada de Taq polimerase, a proteína passou a ser usada na PCR em 1988 e revolucionou a técnica.

“Com o avanço da tecnologia e o desenvolvimento dos termocicladores, equipamentos que controlam a temperatura, todo o processo passou a ser automatizado e se tornou mais rápido”, diz Enéas. “A bactéria Thermus aquaticus já nem é mais necessária: o gene da Taq polimerase foi introduzido (clonado) na E. coli, de modo que ela agora produz a enzima da outra bactéria como se fosse dela. Hoje, a Taq polimerase é facilmente comercializada para laboratórios”, completa.

Uma das muitas funções da PCR é o diagnóstico de doenças infecciosas: a reação permite detectar a presença de genes de um vírus ou bactéria no organismo do paciente a partir da multiplicação do DNA de uma amostra de saliva, sangue ou secreção nasal, por exemplo, mesmo se a quantidade de material genético do patógeno for muito baixa – como quando a infecção está em fase inicial. Devido a essa alta sensibilidade, o teste é considerado padrão-ouro para identificar várias doenças.

Além do diagnóstico de enfermidades, a tecnologia pode servir para diversos fins, como testes de paternidade, investigação criminal, identificação de tumores, sequenciamento de DNA e clonagem.

O passo a passo da PCR

Para fazer a Reação em Cadeia da Polimerase, são necessários alguns ingredientes: a amostra de DNA que será analisada, a enzima DNA polimerase, os nucleotídeos e, por fim, os chamados primers (pedacinhos do DNA que se deseja detectar). Os primers servem para guiar o trabalho da enzima, como um “marcador de texto”, mostrando o trecho que ela deve copiar. Por exemplo: para um teste de influenza, os primers são produzidos com parte da sequência do vírus influenza, e só irão detectar o material genético daquele vírus.

“Consequentemente, apenas o material genético do vírus será copiado, não o DNA humano. O primer é encomendado sob medida pelos laboratórios para empresas especializadas em sintetizá-lo”, explica o pesquisador do Laboratório de Desenvolvimento e Inovação do Butantan, José Ricardo Jensen.

Com tudo isso em um tubinho, a amostra é aquecida a cerca de 95°C, processo necessário para separar as duas fitas do DNA e expor os nucleotídeos; então, a temperatura é reduzida gradativamente, permitindo que os primers grudem em cada uma das fitas no trecho de interesse; por fim, a polimerase fará as cópias, adicionando novos nucleotídeos e formando duas novas fitas, usando como molde o DNA alvo. Esses três passos são repetidos várias e várias vezes para criar quadrilhões de novas fitas.

Se a reação de fato acontecer e houver multiplicação do DNA, significa que existe material genético do vírus analisado na amostra – por isso um resultado positivo é descrito como “reagente”. Caso a reação da polimerase não aconteça, o resultado é negativo, e o laudo aponta a amostra do paciente como “não reagente”.

PCR em tempo real

A Reação em Cadeia da Polimerase foi sendo aprimorada ao longo dos anos, levando à criação da PCR em tempo real ou quantitativa (qPCR) em 2003. Enquanto a PCR convencional consiste em fazer as cópias do DNA durante um número fixo de ciclos e depois analisar o resultado (reagente ou não), a qPCR analisa e quantifica, em tempo real, a amplificação do DNA presente em uma amostra.

“Isso gera uma informação de dinâmica de amplificação, que é dependente da quantidade inicial de DNA na amostra. Ou seja, é possível determinar quanto de DNA viral havia na amostra inicial”, explica Enéas.

Para fazer a qPCR, são incluídas no processo moléculas fluorescentes que ajudam a identificar quanto de novo DNA está sendo formado. À medida que o material genético da amostra é copiado, a quantidade do DNA alvo aumenta exponencialmente, emitindo uma fluorescência que é detectada pelo equipamento. “Todo o processo ocorre dentro da máquina. O aparelho capta a fluorescência e mostra a quantidade do vírus em um gráfico”, diz José Ricardo.

Em situações de emergência, a identificação rápida é essencial para isolar os pacientes e conter a disseminação de um patógeno. Por isso, a tecnologia qPCR foi muito utilizada durante a pandemia de Covid-19, contribuindo para acelerar os diagnósticos e ajudar no controle da doença, liberando resultados em poucas horas. Uma das frentes de diagnóstico no estado de São Paulo foi coordenada pelo próprio Butantan, a Rede de Laboratórios para Diagnóstico do Coronavírus SARS-CoV-2, que realizava 20 mil testes diagnósticos por dia utilizando justamente a qPCR.

Respostas na natureza

Segundo o pesquisador Enéas de Carvalho, muitas atividades realizadas por cientistas são baseadas em tentar reproduzir o que a natureza faz. “Nós tiramos proveito de diversos fenômenos que observamos na natureza e trazemos para o laboratório como uma ferramenta de desenvolvimento tecnológico. E com a PCR foi assim”, conta.

Além da Taq polimerase, outra enzima amplamente utilizada na PCR é a Pfu, proteína extraída da arqueia Pyrococcus furiosus, um microrganismo proveniente da Ilha Vulcano, na Itália, descoberto em 1986 por pesquisadores alemães. Sua temperatura ideal é de nada menos que 100°C, o que o torna uma boa opção para técnicas que envolvem altas temperaturas.

Na PCR, enquanto a Taq é mais usada para diagnósticos, a Pfu tende a ser usada para clonagem, atividade que exige mais precisão. “A Taq é mais rápida e erra um nucleotídeo a cada 10 mil. Para diagnosticar doenças, é ideal pela agilidade e porque o objetivo é detectar a presença de um DNA de vírus ou bactéria – e eventuais erros de cópia não impactam nisso. Já a Pfu, embora demore mais, é recomendada para clonagem pois é mais precisa: sua taxa de erro é de um a cada 1,3 milhão de nucleotídeos”, esclarece Enéas.

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan
Arte: Daniel das Neves