Ganhou destaque nos últimos anos a técnica Crispr/CAS9, que permite a edição de genes. A partir da ação de enzimas, a metodologia descoberta em 2012 é capaz de quebrar as ligações entre os nucleotídeos na molécula de DNA e, assim, inserir, remover ou alterar material genético em locais especificos do genoma.
Inquestionavelmente revolucionária, a técnica de edição de genes surge como um catalisador de descobertas, principalmente para doenças genéticas hoje incuráveis, mas também provoca uma série de preocupações no campo da bioética.
“O grande temor, quando se tem uma técnica dessa em mãos, é usá-la para eugenia. E essa preocupação não deve ser só do cientista. Essa é uma discussão que tem que vir a público. O cientista precisa apontar os riscos e apresentar toda a ação para a sociedade. Mas é a sociedade que tem que se apropriar dessa discussão, pois é ela que vai decidir o que é permitido ou não”, disse Vilma Regina Martins , durante o programa Ciência Aberta, uma parceria da FAPESP e da Folha de S. Paulo, no dia 4 de outubro.
Martins é superintendente de Pesquisa e chefe do grupo de Biologia Tumoral e Biomarcadores do A.C.Camargo Cancer Center.
Também participaram do programa Mayana Zatz, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL ) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP –, e José Eduardo Krieger , professor titular de Genética e Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração.
A mediação do debate foi feita pela jornalista Sabine Righetti.
“Existem preocupações no campo da bioética, mas é preciso salientar que a edição genética é muito mais difícil do que se imagina. Até hoje, por exemplo, não se sabe a causa da hipertensão, principal fator de risco das doenças cardiovasculares. Já foram identificadas cerca de 750 variantes genéticas que influenciam o nível de pressão arterial, mas elas nunca explicam mais de 3% da variação da pressão arterial”, disse Krieger.
Também não é possível, a partir da edição genética, desenvolver um genoma com as características de uma pessoa que corra mais rápido ou seja mais alta, por exemplo. “Conhecemos pouco ainda. Então como a comunidade científica está lidando com isso? Uma das primeiras decisões foi não mexer em nada que possa ser transmitido. Tanto que os primeiros testes clínicos com Crispr foram na área de câncer. E é assim que vamos progredindo, tentando melhorar o conhecimento, sem fechar todas as portas. Caso contrário, ficamos no obscurantismo”, disse Krieger.
Zatz acredita que as doenças genéticas de início tardias devem ser a área da saúde em que os cientistas poderão atuar de forma mais eficiente com o auxílio da edição genética.
“São casos que, apesar de a pessoa não ter nenhum sinal da doença até certa idade, ela já nasce com uma mutação determinante para seu desenvolvimento. Porém ainda existe o risco de off target, que é focar em um determinado gene e, de repente, acabar alterando outro, que não tem nada a ver com a doença. Isso pode ter um resultado muito pior que o esperado”, disse.
Apesar da complexidade e dificuldades da edição de genes, os avanços já são enormes. Um exemplo de como a ciência pode avançar por meio da edição de genes são os bancos de dados em genômica e o compartilhamento desses dados entre a comunidade científica. Em 2015, foi constituído o primeiro banco público de dados genômicos da América Latina, pela Brazilian Initiative Precision Medicine (BIPMed), com apoio da FAPESP.
Pesquisadores do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco montaram um banco de dados com 1.300 amostras genéticas de pessoas saudáveis com mais de 60 anos. “O mais interessante é que, já na primeira análise do sequenciamento genômico, identificamos cerca de 200 mil variantes que nunca tinham sido descritas em outros bancos internacionais. Por que isso? Porque a nossa população é única. Isso mostra a importância de ter um banco de dados nossos, e não nos basearmos apenas em bancos internacionais”, disse Zatz.
O banco de dados propiciou outras descobertas interessantes no estudo de genes que causam formas hereditárias de câncer, a minoria dos casos da doença. “No banco de dados, achamos 10 pessoas que tinham mutações hereditárias, porém só duas apresentaram câncer ao longo da vida. Inclusive, uma senhora de 93 anos que tem a mutação no gene BRCA1 –responsável pelo câncer de mama – e que até agora não desenvolveu nada de doença”, disse.
Projeto Genoma Humano
A técnica do Crispr é fruto de um longo caminho de pesquisas iniciadas há mais de 20 anos com o projeto de genoma humano e de outros organismos. Ao fazer o genoma de vários organismos, cientistas notaram que havia sequências de DNA de bactérias, por exemplo, no genoma humano.
“Havia sequências estranhas dentro do genoma e em padrões que pareciam não estar ali ao acaso. Quinze anos se passaram e um novo conjunto de conhecimentos mostrou que, na realidade, aquilo era um rudimento de um sistema imune”, disse Krieger.
O conhecimento avança mais, conta Krieger, ao ponto de dois grupos de pesquisadores, de centros de pesquisa na Califórnia e em Boston, nos Estados Unidos, tentarem usar esse mecanismo do sistema imune como base para uma ferramenta de manipulação genética. Era o nascimento da técnica do Crispr.
“Começou-se a tirar proveito desse conhecimento, as enzimas poderiam ter um papel para reconhecimento e quebra do DNA, que poderia ser reparado. Foram mais uns 10 anos até a conclusão que era possível usar esse conhecimento para fazer edição genética”, disse.
No programa Ciência Aberta, Zatz elencou os objetivos dos cientistas ao longo desse percurso de descobertas. “No começo, ficávamos muito felizes em saber onde um determinado gene estava. Depois, queríamos saber o que os genes faziam (em doença genética, o que o gene fazia de errado) e agora queremos consertar o que está errado. Ainda não estamos na clínica, mas as pesquisas são muito promissoras”, disse.
Novo tratamento contra o câncer
Uma ferramenta tão poderosa como a edição genética abre caminho para novas abordagens. Um exemplo é a terapia com inibidores de checkpoint imunológico, que rendeu aos cientistas Tasuku Honjo e James P. Allison o prêmio Nobel de Medicina 2018.
O câncer é uma doença genética que envolve a alteração de vários genes, sendo só uma pequena parte dos tipos de câncer causada por alterações genéticas herdadas de pais para filho. “Isso significa que seria praticamente impossível fazer a edição desses vários genes. Porém, a técnica pode ser usada no que se refere ao sistema imune, que no caso do câncer fica incapaz de reconhecer e destruir a célula tumoral”, disse Martins.
Honjo e Allison descobriram os mecanismos das células tumorais para escaparem da defesa imune: a ação do linfócito T, célula do sistema imune que, inibida por proteínas envolvidas no balanço de ativação e desligamento do sistema imune, se torna incapaz de reconhecer o tumor.
“Hoje são usados em pacientes tratamentos com anticorpos que reconhecem essas proteínas. Em edição gênica, existe a possibilidade de editar o linfócito T para que ele reconheça as células tumorais como algo que não seja do indivíduo e que deve ser destruído”, disse Martins.
De acordo com Martins, a terapia com inibidores de checkpoint imunológico proporciona um tipo de tratamento mais inteligente aos pacientes com câncer.
“Passamos muito tempo tratando o câncer de uma maneira totalmente inespecífica, com agentes tóxicos que destroem a célula tumoral, mas causam um desastre nas outras células. Porém agora, em vez de ficar buscando quais são todas as mutações que estão envolvidas com os diferentes tumores, que tal modular o sistema imune para que ele próprio seja capaz de reconhecer a célula tumoral, de qualquer tumor?”, disse.
Assista abaixo a íntegra desta edição do programa Ciência Aberta. A íntegra dos programas anteriores estão disponíveis em www.fapesp.br/ciencia-aberta/.
Fonte: Agência FAPESP