Todos os anos, 7,7 milhões de vidas são perdidas em razão de infecções bacterianas. Dessas mortes, 1,27 milhão são causadas por microrganismos que os antibióticos não conseguem mais combater – são as bactérias multirresistentes, conhecidas popularmente como superbactérias. Considerados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma das dez maiores ameaças à saúde global atualmente, esses micróbios fazem com que doenças comuns, como infecção urinária, pneumonia, meningite e tuberculose, se tornem difíceis ou até impossíveis de curar. O risco potencial é ainda maior para procedimentos complexos que podem sofrer com intercorrências, como transplantes de órgãos e terapias com imunossupressores.
O posicionamento da OMS sobre as superbactérias não veio à toa: já em 2014, um relatório encomendado pelo governo do Reino Unido estimava que elas poderiam causar até 10 milhões de mortes por ano em 2050. Em 2022, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) também fez um alerta relacionado ao assunto – bactérias multirresistentes têm se multiplicado com rapidez alarmante e em larga escala desde o início da pandemia de Covid-19.
No Brasil, o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que atuou até 2023 no monitoramento de agentes capazes de rejeitar medicamentos antimicrobianos, corrobora esse crescimento. Em 2019, a organização possuía um repositório com pouco mais de mil bactérias resistentes, enviadas de diversas partes do Brasil. Em 2020, durante a pandemia, esse número já totalizava 2 mil exemplares. Em 2021, o laboratório registrou 3,7 mil amostras de microrganismos resistentes nos dez primeiros meses do ano – três vezes mais que em todo o ano de 2019.
Especialistas concordam que a situação foi agravada pela ausência de um tratamento específico contra a Covid-19 durante a pandemia. “Cerca de 70% dos pacientes afetados no Brasil saía do hospital tomando um antibiótico. A doença é causada pelo vírus SARS-CoV-2. O que um antibiótico pode fazer contra um vírus? Nada. Depois da pandemia é que veio a conta: aumentou muito o número de bactérias resistentes”, explica o doutor em parasitologia e pesquisador científico do Laboratório de Fisiopatologia do Instituto Butantan, André Gustavo Tempone.
Por que as bactérias resistem aos remédios?
O surgimento das bactérias multirresistentes é quase concomitante à criação dos medicamentos antibióticos. Em 1907, o médico alemão Paul Ehrlich identificou o primeiro antibiótico de origem sintética do mundo, a arsfenamina, utilizada para combater a bactéria Treponema pallidum, causadora da sífilis. Vinte anos depois, em 1928, já eram registrados casos em que o remédio não conseguia eliminar o microrganismo.
As penicilinas, também descobertas em 1928, passaram por algo parecido a partir de 1943, quando foram incorporadas de forma ampla às terapias clínicas. Seu uso extensivo no tratamento de infecções bacterianas diversas – uma revolução na medicina como a conhecemos – também deu origem a novas bactérias capazes de destruir os compostos utilizados para matá-las.
Ao receber o Prêmio Nobel de Medicina de 1945, o médico e microbiologista britânico Alexander Fleming, que descobriu a substância, alertou a comunidade médica para o risco potencial de seu uso excessivo: “Não é difícil tornar os micróbios resistentes à penicilina em laboratório, expondo-os a concentrações insuficientes para eliminá-los.”
A resistência bacteriana, aliás, é uma propriedade bem conhecida da ciência. “Sempre aconteceu e sempre vai acontecer, porque é uma característica das bactérias – conhecer uma molécula química, depois reconhecê-la, e desenvolver mecanismos para expulsá-la ou degradá-la. A partir disso, a bactéria passa a informação genética para outra bactéria e se cria a resistência”, esclarece Tempone. É um quadro cíclico e natural – por isso, os cientistas estão sempre em busca de fármacos inovadores para mitigar a proliferação de bactérias multirresistentes.
O dilema é que antibióticos capazes de matar essas bactérias não estão sendo desenvolvidos na mesma velocidade em que elas surgem. A produção da última classe inovadora, isto é, que estabelece um avanço em relação aos antibióticos já existentes, data de 1968.
De acordo com o relatório da OMS Agentes antibacterianos em desenvolvimento pré-clínico e clínico 2023, há no mundo todo cerca de 244 novos produtos antimicrobianos em estudo pré-clínico, sendo 43 deles voltados para os patógenos de prioridade crítica elencados pela organização. Do total de medicamentos em pesquisa pré-clínica, 93 são alternativas não tradicionais, baseadas em tecnologias que utilizam bacteriófagos (vírus que infectam bactérias), inibidores de virulência (que interceptam a comunicação entre os micróbios), compostos imunomoduladores (estimulantes da resposta orgânica do corpo a microrganismos) ou agentes potencializadores.
Por outro lado, 10 dos 13 antibióticos de modelo tradicional aprovados para distribuição no mercado global por diferentes agências regulatórias, entre julho de 2017 e 2023, fazem parte de classes de antimicrobianos já existentes, nas quais há resistência microbiana conhecida.
Sem medicamentos capazes de combatê-las, as bactérias podem surgir em cepas com mecanismos de resistência cada vez mais sofisticados. As penicilinas são um exemplo: nesta classe de antibióticos existem os anéis beta-lactâmicos, responsáveis por comprometer a integridade da parede celular bacteriana. A bactéria que sobrevive à aplicação do remédio – pelo mau uso ou interrupção do tratamento – dá origem a microrganismos capazes de desenvolver quimicamente uma enzima, a beta-lactamase, que degrada as moléculas do antibiótico e o torna ineficaz. Outra possibilidade de resistência bacteriana são as bombas de efluxo: essas proteínas conseguem expulsar os antibióticos das células antes que eles atinjam o seu alvo molecular.
Tomar antibióticos por conta própria: por que é um grande problema?
Uma das principais causas da resistência microbiana é o uso indiscriminado de antibióticos, especialmente aquele feito sem orientação médica. Em sua tese de doutorado submetida à Universidade Federal de Santa Catarina, a microbiologista Neusa de Queiroz Santos, autora do livro Infecção Hospitalar: uma reflexão histórico-crítica, delimita as consequências do uso desse tipo de medicamento por conta própria: eles podem facilitar a seleção de cepas de bactérias resistentes que irão se proliferar e causar superinfecções. Esse cenário influencia ecológica e epidemiologicamente o ambiente, pode causar grande incidência de efeitos colaterais em pacientes com enfermidades, além de aumentar o número de mortes por infecções bacterianas, sobretudo as que são facilmente tratáveis com antibióticos – quando utilizados da maneira correta.
“Os antibióticos só devem ser utilizados quando o médico fizer a prescrição e seguindo as recomendações de tempo adequadas, pois são, também, perigosos. O médico indicou que você tome o remédio por 14 dias, pode tomar por 13? Não. Nenhuma bactéria pode sair viva”, explica Tempone.
Vale ressaltar ainda que muitas bactérias são imprescindíveis para a vida das pessoas, e o mau uso de antibióticos também as afetam. “A quantidade de bactérias e fungos presentes no corpo humano é maior do que a quantidade de células, e esses microrganismos compõem o que chamamos de microbiota”, reforça o pesquisador do Butantan. Um estudo publicado na revista Frontiers in Immunology e desenvolvido por cientistas do Brasil, Uruguai, Argentina, Peru, México e Espanha mostra que, em excesso, antibióticos podem afetar negativamente a microbiota intestinal, que é essencial para o nosso sistema imune adaptativo, e até mesmo provocar problemas cardíacos e neurológicos.
Matéria – Instituto Butantan
Reportagem: Guilherme Castro
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan e Mateus Serrer