Por: Dr. Fabiano de Abreu Agrela
Neurologistas clínicos encontram regularmente uma situação intrigante nos consultórios: pacientes com resultados excepcionais em testes de QI que apresentam histórico acadêmico e profissional medíocre. A primeira reação é desconfiar dos testes, questionar a motivação ou procurar transtornos psiquiátricos. Mas a resposta está em outro lugar: na compreensão de que o cérebro humano opera através de sistemas neurais independentes que nem sempre trabalham de forma sincronizada. Ter alta capacidade de raciocínio não garante a habilidade de usar esse raciocínio de forma organizada.
O MAESTRO AUSENTE: QUANDO O CÉREBRO NÃO SE GOVERNA
O controle executivo representa o sistema neural que coordena e direciona processos cognitivos. Localizado primariamente no córtex pré-frontal dorsolateral e no cingulado anterior, esse circuito funciona como o maestro de uma orquestra: não produz música diretamente, mas determina quando cada instrumento toca, qual volume usar e como as melodias se sincronizam. Três componentes definem esse sistema: a capacidade de manter informações temporariamente ativas (memória de trabalho), a habilidade de bloquear respostas automáticas inadequadas (inibição) e a competência para alternar entre diferentes modos de pensamento (flexibilidade).
Hatoum et al. (2022) mapearam os fundamentos genéticos desses processos através de análises que incluíram mais de 400.000 participantes. Os pesquisadores identificaram variantes específicas em genes que regulam receptores GABAérgicos e transportadores dopaminérgicos no córtex pré-frontal. O achado central: essas variantes genéticas segregam independentemente dos genes associados à inteligência geral. Um indivíduo pode herdar configurações genéticas que produzem densidade sináptica excepcional em regiões associadas ao raciocínio abstrato, mas simultaneamente carregar variantes que comprometem a regulação dopaminérgica no córtex pré-frontal responsável pelo controle atencional.
A neurobiologia dessa dissociação é direta. O controle executivo depende da modulação dopaminérgica para sustentar padrões de ativação neural no córtex pré-frontal. Quando neurônios piramidais dessa região mantêm disparos sincronizados, conseguimos segurar um pensamento específico enquanto trabalhamos com ele. Variantes no gene COMT (catecol-O-metiltransferase) determinam a velocidade de degradação da dopamina nessa região. Algumas versões produzem degradação rápida, resultando em dificuldade para manter ativação neural estável. O resultado clínico: pensamentos que escapam, atenção que deriva, planos que se fragmentam.
A MÁQUINA SEM FREIOS: QUANDO A POTÊNCIA EXISTE MAS O CONTROLE FALTA
A inteligência geral opera através de mecanismos distintos. O fator g, conceito central na psicometria, reflete a eficiência global da transmissão de informações através do cérebro. A base neural envolve conectividade entre regiões distantes, velocidade de condução axonal determinada pela mielinização e densidade de receptores glutamatérgicos que facilitam plasticidade sináptica. Cérebros com alta inteligência fluida processam padrões complexos rapidamente porque a informação viaja com menos resistência entre áreas especializadas.
A genética dessa capacidade segue trajetória própria. SNPs associados à inteligência concentram-se em genes que regulam o desenvolvimento de substância branca, a expressão de BDNF (fator neurotrófico que promove crescimento sináptico) e a distribuição de receptores NMDA no hipocampo. Um cérebro pode herdar configurações genéticas ótimas para esses processos, resultando em QI superior a 130, mas simultaneamente carregar variantes deletérias para genes do controle executivo.
Clinicamente, esses indivíduos demonstram raciocínio sofisticado durante avaliações estruturadas. Resolvem matrizes progressivas de Raven com facilidade, compreendem conceitos abstratos rapidamente, estabelecem conexões lógicas que outros não percebem. Mas fora do ambiente controlado do teste, o desempenho desmorona. Esquecem compromissos apesar de lembrá-los pela manhã. Iniciam análises complexas mas abandonam no meio quando surge um pensamento tangencial. Formulam planos detalhados que nunca executam porque o cérebro não consegue manter o objetivo ativo tempo suficiente.
QUANDO OS SISTEMAS SE ALINHAM: A FUNÇÃO EXECUTIVA COMO AMPLIFICADOR COGNITIVO
O perfil oposto revela como função executiva robusta multiplica inteligência base. Quando genes para controle executivo produzem regulação dopaminérgica eficiente, o córtex pré-frontal consegue orquestrar recursos cognitivos de forma coordenada. A memória de trabalho mantém objetivos ativos enquanto o raciocínio opera. O controle inibitório bloqueia informações irrelevantes que competem por atenção. A flexibilidade permite ajustar estratégias quando obstáculos aparecem.
Nesses cérebros, a inteligência base se torna funcionalmente mais poderosa. Um QI de 125 com função executiva superior entrega resultados comparáveis a um QI de 145 com função executiva deficiente. A diferença não está na capacidade de processar complexidade, mas na habilidade de sustentar esse processamento através de tarefas longas, de ignorar distrações durante o trabalho concentrado, de converter ideias em ações sequenciais organizadas.
Spencer et al. (2013) documentaram esse fenômeno através de neuroimagem funcional. Participantes com função executiva robusta demonstraram ativação sustentada no córtex pré-frontal dorsolateral durante tarefas cognitivas prolongadas, mesmo quando distrações eram introduzidas. Aqueles com função executiva comprometida mostraram ativação inicial similar, mas rápida dessincronização quando estímulos competitivos apareciam. O padrão sugere que o problema não é capacidade de ativar circuitos relevantes, mas habilidade de manter essa ativação estável contra interferências.
COMPENSAÇÃO E REALIDADE NEUROBIOLÓGICA
Intervenções farmacológicas confirmam a independência desses sistemas. Metilfenidato aumenta disponibilidade de dopamina no córtex pré-frontal bloqueando transportadores DAT1. Pacientes com QI alto mas função executiva comprometida mostram melhora dramática em organização, conclusão de tarefas e controle atencional. O QI mensurado permanece idêntico, mas a capacidade de usar essa inteligência melhora substancialmente. Algumas pessoas necessitam construir quimicamente o que outras herdam geneticamente.
Estratégias comportamentais seguem a mesma lógica. Listas externas substituem memória de trabalho interna. Ambientes silenciosos compensam controle inibitório deficiente. Rotinas rígidas criam estruturas que o córtex pré-frontal não gera espontaneamente. Essas não são soluções para preguiça ou falta de disciplina, mas adaptações necessárias para arquiteturas neurais específicas.
A TRAJETÓRIA DETERMINADA PELA GENÉTICA
A mensagem central é incômoda mas libertadora: genética determina não apenas quanto potencial cognitivo você herda, mas também sua capacidade de acessar esse potencial. Alguns cérebros vêm equipados com ambos os sistemas funcionando em alta capacidade. Outros herdam inteligência excepcional mas mecanismos de controle inadequados. A segunda configuração produz mais frustração porque a pessoa sente o próprio potencial mas não consegue materializá-lo consistentemente.
Reconhecer essa realidade neurobiológica permite mudar a abordagem. Parar de tentar “se esforçar mais” quando o problema é arquitetura neural. Implementar compensações externas quando controles internos faltam. Aceitar que realizações significativas são possíveis através de caminhos diferentes, mesmo quando o ponto de partida genético cria obstáculos específicos. Inteligência sem controle executivo não é deficiência de caráter. É configuração neural que requer estratégias específicas para converter potencial em realização.
REFERÊNCIAS
HATOUM, A. S. et al. Genome-wide association study shows that executive functioning is influenced by GABAergic processes and is a neurocognitive genetic correlate of psychiatric disorders. Biological Psychiatry, v. 91, n. 1, p. 63-74, 2022. DOI: 10.1016/j.biopsych.2021.06.014
SPENCER, T. J. et al. Effect of psychostimulants on brain structure and function in ADHD: a qualitative literature review of MRI-based neuroimaging studies. The Journal of Clinical Psychiatry, v. 74, n. 9, p. 902-917, 2013. DOI: 10.4088/JCP.12r08287


