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O Ato Responsável na Esfera Pública: Uma Análise do Conflito entre Palavra e Gesto

O Ato Responsável na Esfera Pública: Uma Análise do Conflito entre Palavra e Gesto

A contemporaneidade tem revelado uma crescente tensão entre a palavra e o gesto no espaço público, onde as interações sociais se tornam palco de embates éticos intensos. Nesse cenário, a filosofia da linguagem dialógica de Mikhail Bakhtin oferece um arcabouço teórico robusto para a compreensão das relações entre responsabilidade, ato ético e palavra. De acordo com essa perspectiva, o ser humano não é um mero espectador do mundo, mas está intrinsecamente implicado nele, participando do evento da existência por meio de atos concretos e irrepetíveis. Tal concepção bakhtiniana sustenta que não há álibi para o ser”, ou seja, a neutralidade diante do outro é inviável, e todo ato, gesto ou palavra carrega uma responsabilidade intransferível.

Um episódio elucidativo dessa dinâmica ocorreu em 2024, durante um debate eleitoral na TV Cultura entre os então candidatos à prefeitura de São Paulo, José Luiz Datena e Pablo Marçal. O conflito verbal e físico, que culminou em uma agressão com uma cadeira, amplamente repercutido nas redes sociais, serve como um estudo de caso para analisar a produção ética da palavra e dos atos no espaço social. A análise desse evento, fundamentada na filosofia do ato responsável, busca compreender como atos e palavras se manifestam como movimentos éticos e responsivos, evidenciando a ausência de neutralidade na esfera pública atual. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e interpretativa, alicerçada nos referenciais de Minayo (2001) e Silveira e Córdova (2009), privilegiando a fluidez dos sentidos e a historicidade das práticas discursivas.

A linguagem, sob a ótica bakhtiniana, não se configura como um mero instrumento transparente de transmissão de ideias, mas como o próprio espaço em que o sujeito falante se constrói em relação ao outro. A palavra é inerentemente dialógica, nascendo do entrelaçamento de vozes, das tensões entre valores sociais e das posições éticas dos interlocutores. O “não-álibi” expressa a impossibilidade de o sujeito se ausentar ou se esquivar de sua responsabilidade diante da vida, visto que cada ser humano ocupa um lugar único e insubstituível no existir, e é dessa singularidade que suas palavras e atos derivam sentido pleno. Desse modo, em espaços públicos como debates eleitorais, cada palavra proferida e cada gesto exibido são atos carregados de sentidos sociais e históricos, imbuídos da responsabilidade de quem, diante do outro e da coletividade, constrói e disputa significados. A responsabilidade do ato não pode ser dissociada da individualidade e das circunstâncias em que se manifesta, significando que a validade e o impacto de um ato dependem não apenas de sua teoria ou intenção, mas da história e das emoções que o acompanham.

O episódio da “cadeirada” no debate entre Datena e Marçal ilustra o ápice do transbordamento discursivo, onde a palavra, saturada de tensão e incapaz de conter a carga axiológica do encontro, cede lugar ao gesto como forma de expressão. Tal violência, nesse contexto, não é um acidente isolado, mas a consequência de uma escalada discursiva e axiológica. A recepção popular do evento, manifestada em comentários nas redes sociais, revelou uma multiplicidade de leituras e valorações, expondo a ressignificação do acontecimento. Os comentários, que variaram de críticas generalizadas à política à ironia e ao desprezo pelos envolvidos, demonstram como o sentido de um acontecimento discursivo é disputado e renegociado na arena pública, confirmando o princípio bakhtiniano de que os sentidos não são fixos, mas se refazem incessantemente no processo de interlocução social. A análise do caso realça a falência do espaço público como arena de debate responsável, onde o ataque físico substitui a argumentação, e a palavra perde sua potência de mediação, resultando na projeção da irracionalidade e do autoritarismo simbólico sobre os envolvidos.

Em síntese, a filosofia do ato ético de Bakhtin permite compreender que, na vida política, cada enunciado e gesto exigem uma resposta e responsabilidade inelutáveis. A ruptura do discurso pelo ato físico, como observado no debate, configura-se como uma expressão visível da precarização ética do espaço público contemporâneo. O embate entre Datena e Marçal, com suas acusações e provocações, culminou em uma ação física que não foi um ato isolado, mas a continuidade de um conflito discursivo saturado. A inacababilidade dos atos humanos nos convoca, de maneira incessante, a resistir à barbárie e a restaurar na palavra e nos riscos que ela acarreta a possibilidade de uma interlocução verdadeiramente responsável.

Referência:

OLIVEIRA, I. F. A.; MACIEL, H. S.; SOUZA, F. M. Nenhum álibi para o Ser: atos e palavras em disputa no espaço público. Open Minds International Journal, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 65-79, 2025. doi: https://doi.org/10.47180/omij.v6i1.338.


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