Cientistas identificaram consideráveis alterações na composição de lipídios no plasma de recém-nascidos que tiveram exposição ao vírus da zika ainda na barriga da mãe. Esses resultados podem contribuir para o diagnóstico precoce e monitoramento da zika congênita, tanto em bebês com microcefalia quanto nos assintomáticos. As conclusões da pesquisa são apresentadas em artigo publicado na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. A equipe autora do trabalho inclui pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da USP e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro e da Bahia.
Quando bebês começaram a nascer com microcefalia durante o surto de zika em 2015 e 2016 no Brasil, o governo declarou situação de emergência em saúde pública, embora a associação entre a doença e a microcefalia ainda não estivesse confirmada. Hoje se sabe que o vírus da zika atinge a placenta e desencadeia uma inflamação que pode causar insuficiência placentária, resultando em deficiência na liberação de determinados lipídios e levando a déficits no cérebro e na retina durante o desenvolvimento fetal. “Com esses resultados, temos uma assinatura molecular que poderia ser usada como um biomarcador para crianças que foram expostas ao vírus durante o período pré-natal”, afirma Marcos Yukio Yoshinaga, pesquisador em pós-doutorado no laboratório da professora Sayuri Miyamoto, do IQ e do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Processos Redox (Cepid Redoxoma), e coordenador da pesquisa.
A zika congênita, caracterizada pela transmissão do vírus da mãe para o bebê durante a gestação, é uma síndrome com um amplo espectro de quadros clínicos, que vão de casos assintomáticos à microcefalia e outras anormalidades no desenvolvimento neurológico, manifestadas na primeira infância. Recém-nascidos expostos ao vírus da zika que não apresentam microcefalia podem desenvolver anormalidades significativas de 1 a 3 anos e meio após o nascimento, conforme revelado por imagens do cérebro e avaliações de desenvolvimento neurológico. Durante o desenvolvimento inicial do cérebro, os lipídios desempenham um papel central no metabolismo, na estrutura de membranas e na sinalização.
O transporte lipídico por via transplacentária é delicadamente regulado durante a gravidez. Alterações no metabolismo lipídico da placenta podem afetar o desenvolvimento embrionário, especialmente do cérebro e dos olhos, que dependem da transferência de ácidos graxos poli-insaturados, como o ácido docosahexaenoico (DHA) e o ácido araquidônico (ARA), através da placenta. Coautora do artigo, a infectologista e pesquisadora Isadora Cristina de Siqueira, da Fiocruz Bahia, ressalta que a maioria dos estudos sobre a infecção congênita por zika encontrada na literatura é relacionada às descrições epidemiológicas e clínicas das crianças. “A gente acredita que tenha um número enorme de crianças que foram acometidas com um quadro mais leve e que precisam de um acompanhamento a longo prazo”, afirma. “Não temos nada palpável do ponto de vista laboratorial, nenhum biomarcador de acompanhamento ou de gravidade. O estudo traz informações novas sobre a patogênese da doença, ao mostrar que crianças menos afetadas também apresentam alterações de lipídios, então ele traz marcadores laboratoriais que podem ser usados na prática.” Ela destacou ainda a importância, para a realização do estudo, da colaboração entre pesquisadores e instituições de três Estados brasileiros. Para a professora Sayuri, a qualidade da análise experimental e a precisão em termos de identificação das espécies lipídicas foram fundamentais para os resultados da pesquisa. “A plataforma lipidômica que foi implantada no Cepid Redoxoma permitiu mais um estudo que mostra o potencial dessa técnica para discriminar marcadores importantes para doenças.”