O filme brasileiro “O Cheiro do Ralo” (2006), baseado no romance homônimo de Lourenço Mutarelli (2002), é uma obra cinematográfica que instiga a reflexão sobre a degradação humana e as contradições da sociedade contemporânea por meio dos conceitos de grotesco e carnavalização, conforme elaborados pelo Círculo de Bakhtin. A análise da tessitura verbo-visual do filme revela como a estética rabelaisiana e os signos do capitalismo se entrelaçam para configurar uma crítica simbólica, explorando a dimensão polifônica da narrativa.
A produção cinematográfica, dirigida por Heitor Dhalia, reencena, em uma chave carnavalesca, o esgarçamento de um sujeito em ruínas, expondo os abismos de um cotidiano marcado pela alienação e pelo consumo. O protagonista, Lourenço (interpretado por Selton Mello), proprietário de uma loja de objetos usados, vivencia uma deterioração de sua relação com o mundo, impulsionada por uma obsessão por uma parte do corpo de uma garçonete e o persistente odor que emana do ralo de seu banheiro. Essa premissa, inicialmente absurda, emerge como uma metáfora da decomposição ética e afetiva nas relações humanas contemporâneas. O humor ácido, a miséria simbólica e a crítica social convergem em um discurso alegórico sobre a lógica do consumo, da indiferença e da violência banalizada.
A obra de Lourenço Mutarelli, com sua linguagem coloquial, visualmente saturada e visceral, transita entre quadrinhos, literatura e teatro, e sua adaptação para o cinema por Heitor Dhalia multiplica os sentidos através de uma mise-en-scène claustrofóbica, planos fechados, ruídos repetitivos e um tom monocromático, compondo uma poética do desconforto. A carnavalização, como fenômeno que subverte hierarquias sociais e dissolve fronteiras entre o alto e o baixo, o sagrado e o profano, o oficial e o marginal, encontra ressonância na obra de Mutarelli. Traços grotescos, marcados pela hipérbole e pelo riso degradante, permeiam a narrativa, construindo um mundo à maneira rabelaisiana. O cronotopo carnavalizado presente no filme, sem datas ou pistas cronológicas claras, acentua o caráter atemporal das críticas sociais e culturais, como a corrosão das relações humanas no capitalismo.
No universo grotesco do filme, o corpo degradado e a inversão hierárquica configuram uma crítica simbólica às contradições da sociedade. O cheiro do ralo, elemento central, é ambivalente: repulsivo e atraente, culpabilizador e prazeroso, materializando o rebaixamento do corpo e, paradoxalmente, sua potência renovadora. A objetificação e a fragmentação do corpo são acentuadas, como na obsessão de Lourenço pela bunda da garçonete, que se torna um “presente do inferno” ligado ao ralo entupido, enquanto o “paraíso” é associado à figura da garçonete. Essa cosmovisão ridiculariza a vida material regida pelo Mercado, onde o ser humano é coisificado. A progressão do asco ao prazer em relação ao cheiro do ralo ilustra a constituição do cômico-grotesco.
O grotesco se manifesta também na constituição simbólica da subjetividade de Lourenço, edificada sobre os “restos do mundo”. A projeção de afeto sobre objetos inanimados, como o olho de vidro, a perna mecânica e a luva, que representam fragmentos do pai ausente, revela uma tentativa de reconstrução imaginária e a atualização contemporânea de um corpo grotesco, precário e fragmentado, mas investido de sentido.
A alienação de Lourenço e a superficialidade de suas relações são acentuadas pela ausência de nomes para personagens secundários, como a secretária, o segurança e a garçonete, o que reforça a desumanização. A recusa de Lourenço em reconhecer a “podridão” que emana de si mesmo, projetada no cheiro do ralo, evidencia sua postura monológica. A técnica cinematográfica amplifica os pensamentos do protagonista, criando uma assimetria de vozes onde a do dominante é onipresente, enquanto a do subalterno permanece silenciosa.
Apesar da degradação, a morte de Lourenço ao lado do ralo, seu “portal ambiguo”, é interpretada como um rito de passagem carnavalesco, onde o poder é temporariamente revertido. A ironia final reside na descoberta de que o ralo estava entupido por um objeto pequeno, desmascarando a crise existencial de Lourenço como autoimposta e alimentada por uma cegueira afetiva.
Em síntese, “O Cheiro do Ralo” se inscreve como um gesto ético-estético , no qual o grotesco não apenas subverte, mas revela as camadas subterrâneas das normas sociais e de suas violências sutis. O filme, sob as lentes do Círculo de Bakhtin, torna-se uma poderosa alegoria da sociedade contemporânea, onde o outro é objeto, o discurso é mercadoria e o ralo, símbolo de resíduos, representa uma subjetividade que escorre para a ausência de sentido.
Referência:
GUERRA, M. M.; MACIEL, H. S. Entre ecos do grotesco e da carnavalização no cinema nacional: a tessitura verbo-visual em “O Cheiro do Ralo”. Open Minds International Journal, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 143-160, 2025. DOI: https://doi.org/10.47180/omij.v6i1.340.
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