Desvendando a Neuroquímica do Autismo: Uma Perspectiva Atual

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição neurocomportamental e do neurodesenvolvimento complexa, que se manifesta por deficiências na interação social e na comunicação, bem como por padrões de comportamento ou interesses restritos e repetitivos, e processamento sensorial alterado. A prevalência do autismo aumentou consideravelmente nas últimas duas décadas, passando de 2 a 5 a cada 10.000 crianças para 1 em cada 59 crianças, com uma incidência em meninos quatro vezes maior do que em meninas. A fisiopatologia do autismo envolve a ocorrência de eventos neuroanatômicos e neuroquímicos em estágios precoces do desenvolvimento do sistema nervoso central, com implicações de fatores ambientais, imunológicos, genéticos e epigenéticos.

Múltiplas vias neuroquímicas estão implicadas no TEA, mas a interação entre essas redes complexas e como elas desencadeiam os sintomas centrais do autismo ainda não é completamente compreendida. A disfunção de sistemas de neurotransmissores pode levar a deficiências no desenvolvimento cerebral, resultando em autismo. Este cenário de incerteza motivou a busca por pesquisas que investiguem as alterações neuroquímicas na etiologia do autismo.

Alterações neuroquímicas têm sido documentadas em diversos sistemas de neurotransmissores e neuropeptídeos no autismo. Por exemplo, o desequilíbrio entre os sistemas gabaminérgico (GABA) e glutaminérgico é considerado um mecanismo potencial para os comportamentos autistas. O GABA, o principal neurotransmissor inibitório em cérebros maduros, atua como excitador durante o desenvolvimento cerebral, influenciando a proliferação e diferenciação neuronal. Estudos de ressonância magnética por espectroscopia demonstraram concentrações reduzidas de GABA em diversas áreas cerebrais de indivíduos com autismo. Em contrapartida, foram observados níveis plasmáticos elevados de GABA, bem como da relação glutamato/glutamina, em crianças com TEA. Embora a modulação farmacológica do GABA tenha sido investigada, ainda faltam evidências robustas que suportem seu uso para tratar os sintomas centrais do autismo, necessitando de mais ensaios clínicos bem delineados.

A serotonina (5-HT), um neurotransmissor monoamínico, também desempenha um papel crucial no desenvolvimento cerebral precoce, regulando a divisão celular, a migração e a plasticidade cortical. Níveis elevados de serotonina e de seu transportador (SERT) foram encontrados em crianças com autismo e modelos animais, enquanto a ligação aos receptores 5-HT2A e 5-HT1A foi reduzida em cérebros post-mortem de indivíduos com TEA. A hiperserotonemia plaquetária, um aumento de 20% a 50% nos níveis de serotonina no sangue, tem sido documentada em indivíduos com autismo, sendo um achado considerado específico para o transtorno. A administração de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (SSRIs) mostrou uma eficácia modesta na redução de comportamentos disruptivos e repetitivos, com a fluoxetina demonstrando evidências de diminuição da sintomatologia global do autismo.

Além disso, o sistema dopaminérgico está implicado no autismo, especialmente por seu papel no controle motor, cognição social e comportamentos. O autismo tem sido associado a alterações no circuito mesocorticolímbico dopaminérgico, com redução na liberação de dopamina no córtex pré-frontal e na resposta neural no núcleo accumbens. A disfunção dopaminérgica está relacionada a déficits sociais e comportamentos estereotipados no autismo. Somente os bloqueadores de receptores de dopamina, como a risperidona e o aripiprazol, são aprovados para tratar a irritabilidade e se mostraram eficazes em comportamentos repetitivos no TEA.

A oxitocina (OXT) e a arginina-vasopressina (AVP) também têm sido investigadas devido à sua função na modulação de comportamentos sociais. Níveis alterados de OXT e AVP foram relatados em indivíduos com autismo. Embora a administração de oxitocina em modelos animais tenha resgatado traços autistas e aumentado as habilidades sociais , meta-análises de ensaios clínicos em humanos não encontraram benefícios da oxitocina em relação ao placebo.

Em conclusão, a vasta heterogeneidade do autismo dificulta a identificação de traços neurobiológicos e genéticos exclusivos, e a maioria das descobertas neuroquímicas ainda não foi replicada de forma consistente. A necessidade de mais pesquisas sobre as alterações neuroquímicas no autismo é evidente. Uma compreensão mais aprofundada neste campo pode levar a novas abordagens no manejo farmacológico do autismo e à descoberta de biomarcadores mais específicos e sensíveis.

Referência:
Marotta, R., Risoleo, M. C., Messina, G., Parisi, L., Carotenuto, M., Vetri, L., & Roccella, M. (2020). The Neurochemistry of Autism. Brain Sciences, 10(3), 163. doi:10.3390/brainsci10030163

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