A pandemia de Covid-19 ensina aos profissionais de saúde, a cada semana, que o quadro clínico e a gravidade da doença podem ser amplamente variados. Recentemente, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) norte-americano acrescentou novos sintomas possivelmente causados pelo novo coronavírus humano (SARS-CoV-2), responsável pela Covid-19. Mas a cada nova publicação surgem mais possibilidades.
Os autores de um artigo recém-publicado no periódico Hospital Pediatrics relataram a primeira associação confirmada entre a doença de Kawasaki e a infecção por SARS-CoV-2. A paciente era uma lactente previamente hígida, com seis meses de vida. De notável, a criança não apresentava sintomas respiratórios, e a suspeita de Covid-19 surgiu após a observação de alterações em uma radiografia de tórax simples, solicitada para investigar uma febre sem sinais localizatórios.
A doença de Kawasaki é uma vasculite aguda da infância, que representa a principal causa de doença cardíaca em pacientes pediátricos nos países desenvolvidos. A maior parte dos casos acontece em menores de cinco anos de idade. O diagnóstico da forma clássica da patologia deve ser considerado em pacientes apresentando febre por no mínimo cinco dias, que atendem pelo menos quatro dos cinco critérios clínicos da doença, na ausência de um diagnóstico alternativo.
A Dra. Roshni Mathew, especialista em infectologia pediátrica no Lucile Packard Children’s Hospital, nos Estados Unidos, professora assistente na Stanford University e uma das autoras do artigo, disse: “Nós relatamos esse caso como um achado interessante de exame positivo para SARS-CoV-2 em um lactente com diagnóstico de doença de Kawasaki. O exame foi realizado não pela preocupação clínica com uma infecção do trato respiratório inferior, mas porque a paciente se enquadrava nos critérios da instituição para ser testada”.
“A causa da doença de Kawasaki permanece desconhecida depois de décadas de pesquisa, mas existe uma forte suspeita de que exista um gatilho infeccioso”, explicou a Dra. Roshni. “O coronavírus humano já havia sido implicado no passado, mas não confirmado. Então, foi interessante essa paciente ter testado positivo para SARS-CoV-2”, disse a médica.
A principal complicação da doença de Kawasaki é o surgimento de manifestações clínicas cardíacas, como aneurismas nas artérias coronárias, o que pode levar à necessidade de suporte intensivo e até ao óbito.
No caso relatado, a lactente apresentava febre, irritabilidade, recusa alimentar, exantema não pruriginoso, conjuntivite não purulenta, lábios ressecados, edema de extremidades e proeminência de papilas gustativas. Esses sinais e sintomas foram suficientes para o preenchimento dos critérios diagnósticos de doença de Kawasaki, levando à indicação de tratamento com imunoglobulina humana venosa. A paciente evoluiu com boa resposta clínica e recebeu alta hospitalar.
Alerta das autoridades
O caso relatado nos Estados Unidos não é o único do mundo. Na última semana de abril, a Pediatric Intensive Care Society do Reino Unido emitiu um alerta sobre o aumento no número de casos relatados de uma nova apresentação de uma doença inflamatória multissistêmica em crianças, muitas das quais com exames positivos para Covid-19.
Nesse documento, os especialistas destacam que o número de crianças com Covid-19 que necessitam de cuidados intensivos é muito pequeno. No entanto, eles recomendam que casos de doença de Kawasaki, ainda que atípicos, sejam discutidos com a equipe de infectologia do hospital precocemente.
Na Espanha, a Associação Espanhola de Pediatria emitiu um comunicado destinado aos profissionais de saúde, também relatando uma possível associação entre a doença de Kawasaki e casos de choque com a infecção pelo coronavírus. Esse comunicado acabou por chegar ao conhecimento da população, o que motivou a entidade a emitir um esclarecimento direcionado às famílias, destacando a raridade de casos graves de Covid-19 na população pediátrica.
Já na França, o ministro da Saúde, Olivier Véran, confirmou em uma entrevista ter recebido um alerta por parte de equipes médicas em Paris indicando que “cerca de 15 crianças apresentaram febre, problemas digestivos e uma síndrome inflamatória vascular que pode provocar problemas cardíacos”. Entretanto, ele ressaltou que nem todos os casos estavam associados à Covid-19, e que ainda não é possível afirmar que existe uma associação entre as duas doenças.
Na Itália, um dos países mais afetados pela pandemia, médicos também relataram um aumento na observação de casos de doença de Kawasaki, e informações ainda estão sendo reunidas a fim de estabelecer um vínculo definitivo entre as patologias.
Nos Estados Unidos, autoridades de saúde de Nova York publicaram um comunicado no dia 04 de maio, revelando a internação de 15 crianças, ao longo da última quinzena de abril, com sintomas compatíveis com a forma típica ou atípica da doença de Kawasaki, ou com síndrome inflamatória sistêmica associada a choque. A maioria dos casos foi associada a pelo menos um exame diagnóstico positivo para Covid-19. Os profissionais de saúde foram orientados a notificar imediatamente casos suspeitos para o departamento de saúde.
Subnotificação pode dificultar o diagnóstico no Brasil
O Dr. André Cavalcanti, reumatologista pediátrico do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, que não participou do estudo, comentou: “É provável que já tenhamos no Brasil essa associação entre doença de Kawasaki e Covid-19, como já foi relatado na Europa. Como no Brasil apresentamos limitação e demora no resultado do exame reação em cadeia da polimerase (PCR, sigla do inglês, Polymerase Chain Reaction), pode haver subnotificação de casos, e o exame de sorologia que confirmaria o diagnóstico de Covid-19 não está disponível para a rede pública de saúde.”
“É extremamente importante que os pediatras que estão na linha de frente atendendo crianças com febre prolongada, principalmente acima de cinco dias de vida, pensem na possibilidade de Covid-19 e solicitem o exame RT-PCR, assim como na possibilidade de doença de Kawasaki, mesmo na sua forma incompleta. Nesses casos, faz-se necessário a realização de ecocardiograma e avaliação de especialista a fim de indicar ou não o tratamento com imunoglobulina venosa”, ele acrescentou.
Na opinião do Dr. André, seria importante que fosse organizado um registro dos casos no país, a exemplo do que foi orientado nos EUA, para uma melhor caracterização dessa associação.
“O vírus é apenas um gatilho para uma doença imunomediada, ou seja, o tratamento é imunomodulador, com glicocorticoide e imunoglobulina. Para alguns casos refratários com síndrome da tempestade de citocinas, alguns agentes biológicos se fazem necessários”, ele explicou. “Além disso, alguns pacientes graves, com falência cardíaca e hipotensão, necessitarão de suporte intensivo”, concluiu.
Os autores do artigo e o Dr. André Cavalcante informaram não ter conflitos de interesses relevantes ao tema.
Fonte: Doença de Kawasaki emerge como nova manifestação de Covid-19 em crianças – Medscape – 12 de mai de 2020.
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