Pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e do Laboratório do Grupo Fleury acompanharam um raro caso de leucemia mieloide aguda (LMA) familiar em uma menina de apenas 6 anos. A pesquisa identificou outros cinco casos na mesma família, todos diagnosticados ainda na adolescência, além de duas mutações no gene CEBPA – essencial para dar origem às células que protegem de infecções bacterianas e fúngicas.
O caso foi descrito em um artigo publicado na revista internacional Hematology, Transfusion and Cell Therapy e relatou, de forma inédita, uma nova variante hereditária do gene CEBPA. De acordo com a médica hematologista Lorena Lobo Figueiredo Pontes, o conhecimento de alterações genéticas neste tipo de leucemia é fator decisório para encaminhar um paciente ao transplante de medula óssea ou não.
“São conhecidas as alterações associadas a prognóstico mais favorável, que podem evitar esta terapia inicialmente, e aquelas que caracterizam as leucemias mais agressivas, que necessitam do transplante muito rapidamente. Considerando a complexidade, os riscos e custos do transplante, esse conhecimento é fundamental”, afirma. Lorena é coordenadora do Consórcio Internacional de Leucemias Agudas, uma iniciativa global da Sociedade Americana de Hematologia, e professora do Departamento de Imagens Médicas, Hematologia e Oncologia Clínica da FMRP.
A LMA é uma neoplasia do sistema sanguíneo causada pelo acúmulo de células-tronco na medula óssea, onde são produzidas as células do sangue. A doença conhecida como “câncer do sangue” ocorre quando as células-tronco, também chamadas de imaturas ou precursoras, perdem a capacidade de se diferenciar em células específicas e ganham vantagens de sobrevivência e expansão, ocupando a medula óssea rapidamente e impedindo a formação de células normais.
Para chegar ao caso descrito no estudo, os pesquisadores fizeram um acompanhamento de longo prazo com 187 pacientes diagnosticados com a leucemia mieloide aguda. Dos 187 pacientes, 18 tinham uma variante no gene CEBPA. “O gene CEBPA codifica uma proteína essencial para a diferenciação de células mieloides que vão dar origem aos neutrófilos no nosso sangue periférico, ou seja, as células que nos protegem de infecções bacterianas e fúngicas”, explica a médica.
As mutações neste gene podem ser detectadas em cerca de 5% a 15% dos casos, porém não há disponibilidade no SUS para realização do teste de sequenciamento gênico para pacientes com leucemias agudas. Os casos se tornam ainda mais delicados quando envolvem uma família inteira com mutações germinativas, ou seja, que podem ser passadas para os descendentes.
Lorena explica que a grande dificuldade desses casos é conseguir a pesquisa de mutações do CEBPA e de outros genes associados às neoplasias mieloides como a LMA.
No Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto, conta ela, foi possível fazer a pesquisa apenas para pacientes incluídos em estudos clínicos do investigador com fomento à pesquisa.
Não há disponibilidade no SUS para realização do teste de sequenciamento gênico para pacientes com leucemias agudas nem tampouco para familiares. Espera-se que, por meio da divulgação científica, a gestão da Saúde no País se sensibilize para estas demandas”
– Lorena Lobo Figueiredo Pontes
Variações no gene
O CEBPA é um dos genes que podem apresentar uma variação em células somáticas e levar ao desenvolvimento de LMA em alguma fase da vida, mas também podem estar mutados de forma germinativa, sendo presentes na pessoa desde seu nascimento e podendo ser transmitidos de forma hereditária.
O estudo destacou que mutações germinativas em CEBPA não apenas predispõem ao desenvolvimento da leucemia mieloide aguda, mas também influenciam as mutações adicionais que surgem durante a evolução da doença. Além disso, ele reforça a importância da realização de testes genéticos em famílias com histórico de câncer hematológico, tanto para orientar opções terapêuticas – como o transplante de medula óssea – quanto para identificar e evitar doadores da mesma família.
“Na nossa investigação, cinco casos familiares de LMA foram identificados, incluindo a irmã compatível para o transplante de medula óssea que apresentava a mesma mutação, o que foi útil para contraindicar o procedimento e direcionar a paciente para tratamento apenas com quimioterapia”, conta Lorena.
O tratamento da paciente seguiu protocolos-padrão de quimioterapia infantil e resultou em remissão completa, sem necessidade de transplante de medula óssea. Dois anos após o tratamento, a paciente permanece saudável e sem sinais de recidiva.
“A identificação precoce de mutações genéticas como essa é fundamental para oferecer um acompanhamento adequado aos pacientes e seus familiares. Estudos como este ajudam a construir o conhecimento necessário para um diagnóstico mais rápido e tratamentos mais eficazes no futuro”, afirma Maria de Lourdes Chauffaille, coautora do estudo e consultora médica do Grupo Fleury.
Para a professora da USP, a investigação genética é muito pertinente, pois os pacientes não apresentam outros distúrbios que levantem a suspeita de uma doença hereditária. Por isso, casos de LMA na infância e em pacientes com forte história familiar para a mesma condição merecem a pesquisa genética. “Além disso, o conhecimento do perfil de mutações ao diagnóstico permite o acompanhamento personalizado da resposta ao tratamento por meio de técnicas de alta sensibilidade. A descrição do caso também adiciona aos bancos de dados genéticos mundiais uma nova variante, otimizando o diagnóstico molecular para outros casos”, completa Lorena Pontes.
O estudo Familial acute myeloid leukemia due to a novel germline CEBPA pathogenic variant – a case report está disponível neste link.
Mais informações: lorenafigdo@usp.br, com Lorena Lobo Figueiredo Pontes
*Com informações da Assessoria de Comunicação do Grupo Fleury
Matéria – Jornal da USP, Texto: Tabita Said*
Imagem – Lâmina histológica da medula óssea mostra acúmulo de células sanguíneas imaturas, impedindo o crescimento de glóbulos brancos – Imagem: Makysm / Wikimedia Commons