O autismo, uma deficiência do desenvolvimento, é historicamente caracterizado por interações sociais atípicas, interesses ou movimentos corporais, e comunicação. Ao longo do tempo, certas peculiaridades na fala e linguagem foram consideradas características únicas do autismo, servindo como base para interpretações diagnósticas e terapêuticas. Contudo, uma análise empírica desses fenômenos revela que eles não são exclusivos do autismo, desafiando suposições antigas e a sua utilidade como critérios diagnósticos.
Um desses fenômenos é a inversão de pronomes, onde uma pessoa usa “você” no lugar de “eu” e vice-versa. Interpretações iniciais, influenciadas pela psicanálise, ligavam essa dificuldade a uma suposta “falta de identidade pessoal” ou “processamento perturbado da compreensão de si mesmo e do outro”. No entanto, a dificuldade com pronomes não é única em pessoas autistas. Crianças com desenvolvimento típico precoce, assim como crianças com outras deficiências de desenvolvimento (como deficiência intelectual, surdez e cegueira) e transtornos de linguagem, também demonstram essa dificuldade. A evidência empírica mostra que a dificuldade com pronomes é mais comum em contextos de produção de frases mais complexas. Além disso, quando crianças autistas são pareadas com crianças não-autistas com habilidades de produção ou compreensão de linguagem semelhantes, a quantidade de erros de pronome não é maior no grupo autista. A maioria dessas dificuldades é resolvida com o tempo.
Outro fenômeno frequentemente associado ao autismo é a ecolalia, a repetição da fala de outra pessoa. Embora a ecolalia tenha sido considerada um critério diagnóstico primário para o autismo no DSM-III (1980), ela foi reclassificada no DSM-5 (2013) como um padrão de comportamento restrito e repetitivo, e não como uma deficiência de comunicação. No entanto, evidências sugerem que a ecolalia não deve ser classificada como um comportamento repetitivo. Uma análise de fatores em critérios diagnósticos do autismo demonstrou que a ecolalia se agrupou com outros comportamentos comunicativos, e não com comportamentos repetitivos, como o bater de mãos.
A ecolalia não é exclusiva do autismo. Crianças com desenvolvimento típico e crianças com atraso de linguagem também exibem ecolalia durante os estágios iniciais do desenvolvimento da linguagem. A ecolalia é muitas vezes um fenômeno transitório e produtivo, servindo como uma etapa para uma fala mais generativa. A ecolalia mitigada, por exemplo, que envolve a modificação da fala repetida, demonstra uma progressão em direção à produção de linguagem mais original e complexa.
Um terceiro fenômeno é a suposta defasagem de produção-compreensão reduzida, inexistente ou invertida no autismo. Na linguagem típica, a compreensão (linguagem receptiva) precede a produção (linguagem expressiva). Pesquisas sugeriram, com base em “impressões clínicas claras”, que essa defasagem seria reduzida ou até mesmo invertida em crianças autistas, onde a produção da linguagem seria mais avançada que a compreensão. Contudo, uma meta-análise recente de mais de 60 estudos concluiu que o desenvolvimento da linguagem em crianças autistas segue a mesma defasagem normativa de produção-compreensão, independentemente da idade, da forma da linguagem (vocabulário ou gramática) ou do método de avaliação. A suposição de uma defasagem anormal provavelmente derivou de vieses metodológicos, como amostras pequenas e dados de comparação atípicos.
Em suma, as evidências indicam que a inversão de pronomes, a ecolalia e uma defasagem atípica de produção-compreensão não são fenômenos únicos do autismo e, portanto, não devem ser usados como critérios diagnósticos. A compreensão da linguagem no autismo beneficia-se de uma análise que considera o desenvolvimento típico e outras condições, o que evita interpretações inadequadas e promove uma visão mais precisa e fundamentada do desenvolvimento e uso da linguagem em pessoas autistas.
Referência:
Gernsbacher, M. A., Morson, E. M., & Grace, E. J. (2016). Language and Speech in Autism. Annual Review of Linguistics, 2, 413-425. doi:10.1146/annurev-linguist-030514-124824
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